Nonato Guedes
É um fato, no mínimo, grave, a tentativa do presidente Jair Bolsonaro de interferir nos rumos da CPI a ser instalada pelo Senado, por determinação do Supremo Tribunal Federal, para apurar omissões do governo federal no enfrentamento à pandemia de Covid-19 no país. Numa conversa com o senador Jorge Kajuru (Cidadania-GO), gravada e publicada pelo congressista em suas redes sociais, o presidente da República pede ao parlamentar para ampliar o alcance da CPI e investigar a conduta de prefeitos e governadores. Bolsonaro disse que se os senadores não mudarem o escopo da CPI, ficará caracterizada a parcialidade da investigação. “Vão ouvir só gente nossa para produzir relatório sacana”, traduziu o presidente, na linguagem de baixo calão que lhe é peculiar.
A rigor, teoricamente, não é despropositada uma sugestão para que governos regionais e locais também sejam investigados se, afinal de contas, recebem repasses de recursos vultuosos na rubrica do “combate ao coronavírus” e não são efetivamente transparentes na informação sobre a aplicação das verbas. O problema é que a intenção de Bolsonaro parece ser a de encobrir supostas irregularidades cometidas pelo ex-ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, que, como se sabe, era um fiel cumpridor de ordens do presidente da República. Nesse figurino de caudatário das ordens palacianas, o general Pazuello foi negligente na crise da falta de oxigênio em Manaus, na cruzada para aquisição de vacinas de laboratórios estrangeiros e no atraso na elaboração do Plano Nacional de Imunização, que ainda hoje sofre oscilações de cronograma devido à falta de planejamento efetivo.
Todos esses fatos que tiveram Bolsonaro como protagonista maior e o ex-ministro Eduardo Pazuello como executor configuram crimes de responsabilidade para os quais a Constituição prevê remédios amargos, incluindo o impeachment do presidente da República. Toda a estratégia de Bolsonaro e seus apoiadores é calculada com vistas a travar apurações que possam levar a medidas extremas como a adoção do impeachment – e há o receio de que a CPI da Covid, supervisionada pelo Supremo Tribunal Federal, tenha autonomia e reúna elementos materiais que possam produzir punições desgastantes para expoentes do governo de Bolsonaro que desejam continuar ilesos, apesar da gravidade de condutas que lhe são atribuídas. Desse ponto de vista, a CPI da Covid pode representar “nitroglicerina pura” para o governo federal, que já perdeu popularidade e aprovação até entre ex-eleitores de Bolsonaro.
Na conversa com Kajuru, o presidente acabou confessando seus temores ao dizer: “A CPI hoje é para investigar omissões do presidente Jair Bolsonaro, ponto final. Quer fazer uma investigação completa? Se não mudar o objetivo da CPI, ela vai vir só pra cima de mim. O que tem que fazer para ser uma CPI que realmente seja útil para o Brasil? Mudar a amplitude dela. Bota governadores e prefeitos. Presidente da República, governadores e prefeitos”. No sábado, o senador Alessandro Vieira, do Cidadania-SE, protocolou pedido de aditamento da Covid para ampliar o escopo, com a intenção de incluir nas investigações atos praticados por agentes políticos e administrativos de Estados e municípios na gestão de recursos federais. Ele justificou: “Para não deixar margem de dúvida, já está apresentado, foi protocolado, e a gente vira essa página. Aí, o governo vai de ter de inventar outra desculpa para não apoiar a CPI”. Após a instalação da CPI, o pedido precisará ainda ser aprovado por maioria simples.
Bolsonaro deixa evidente que não aceitará carregar, sozinho, o fardo por eventuais omissões na política nacional de enfrentamento ao coronavírus. Ao insistir na inclusão de governadores, ele dá continuidade ao revanchismo contra a maioria dos gestores estaduais com quem se indispõe por não tê-los como aliados incondicionais, como pretendia. Já se tornou patológica a birra do presidente com governadores de Estados extremos do ponto de vista do poderio econômico e político, como João Doria, de São Paulo, filiado ao PSDB, e Flávio Dino, do Maranhão, filiado ao PCdoB. Toda a crise sanitária da Covid-19 no Brasil tem sido permeada por esse conflito de autoridade entre o presidente e os gestores regionais, que se reflete, também, nas medidas restritivas de mobilidade social para prevenir alastramento do contágio da doença.
Para grande parte da população brasileira, está evidenciado que o interesse do presidente Jair Bolsonaro não é o de prestar contas nem o de apurar eventuais omissões e falhas no enfrentamento à pandemia, mas, sim, o de tumultuar o ambiente político nacional. Ele tem se especializado em fomentar crises artificiais para tentar tirar proveito e, assim, garantir a sua incolumidade no cargo, desafiando as articulações para o seu impeachment. Não foi por outra razão que Bolsonaro investiu alto, pagando um preço salgado na eleição para a Mesa Diretora da Câmara Federal – ele queria ter o controle da pauta das votações e decisões daquela Casa. É uma estratégia adequada ao seu perfil de ditador, ávido pelo poder absoluto, como se isto fosse tão fácil. Apenas para refrescar a memória dos bolsonaristas radicais vale lembrar que não foi esta a primeira vez que o STF determinou a instalação de CPIs a pedido da oposição. Em 2005, o Supremo mandou instaurar a CPI dos Bingos, em 2007 a do Apagão Aéreo e, em 2014, a da Petrobras. Portanto, não há uma orquestração dirigida contra Bolsonaro, como ele tenta fazer crer nos seus delírios de poder.