Nonato Guedes
É visível o esforço do presidente Jair Bolsonaro e do seu governo para sabotar a CPI da Covid-19, cuja instalação ocorrerá ainda este mês. Foi preciso que o Supremo Tribunal Federal interviesse na querela do Executivo com o Legislativo e determinasse a criação da Comissão Parlamentar de Inquérito para que ela ganhasse condições de viabilidade e funcionamento. O presidente Bolsonaro faz de tudo para boicotar ou esvaziar a CPI temendo o desgaste político que possa ser capitalizado pelo seu governo, diante da postura reconhecidamente omissa que restou demonstrada no início da pandemia do coronavírus no Brasil e da suspeita de irregularidades que possam vir à tona com o desenrolar dos trabalhos. Se o desgaste for grande, adeus reeleição em 2022!
Toda CPI é imprevisível, seja no Brasil, seja em qualquer país. No caso da CPI da Covid, o empenho de Bolsonaro em tumultuá-la ou, se possível, descredibilizá-la, ficou refletido a partir da cogitação de convocação do ex-ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, a fim de depor para explicar os motivos que levaram o governo a ser omisso numa situação de calamidade pública. Há, é claro, a perspectiva de responsabilização de figuras ligadas ao atual governo federal pelos impasses logísticos ocorridos no enfrentamento à pandemia, com consequências danosas como o elevado número de mortes e o não menos elevado percentual de casos de contaminação no Brasil. O receio do presidente da República é que a CPI descambe para um processo de impeachment seu à frente do cargo. Não é certo que isto ocorra, mas não será surpresa se acontecer.
A colunista Dora Kramer, em artigo na “Veja”, avaliou que o governo cometeu tropeços na ofensiva desencadeada para barrar a investigação em via de instalação no Senado. “Nada do que ele (Jair Bolsonaro) fez deu certo, como, de resto, costumam fracassar suas tentativas de criar tumultos, distrações e dispersões. Por ora encontra-se atolado no terreno pantanoso em que procurou jogar senadores, ministros do Supremo Tribunal, governadores e prefeitos”, ressalta Dora Kramer. Bolsonaro, como se sabe, manobrou junto à sua base no Congresso e até junto à oposição para que a CPI tivesse caráter geral e envolvesse diretamente, também, governadores de Estados e prefeitos municipais. Era a sua vingança maligna contra gestores que lhe fazem oposição. Ficou acordado que a investigação pode chegar a Estados e municípios num caso tópico – o repasse de recursos federais para tais unidades, rubricados para o combate à Covid. Dependendo dos desdobramentos ou da comprovação de fatos é que se poderá mensurar a culpa ou não de gestores estaduais e municipais.
Dora Kramer lembra que, na história recente do Brasil, quando inquéritos realizados pelo Parlamento atingiram seus objetivos, os efeitos foram fatais. Exemplifica que a CPI do PC Farias, em 1992, resultou no processo de impeachment de um presidente da República, Fernando Collor de Mello. Já a CPI dos Anões do Orçamento, em 1993, provocou a cassação de seis deputados e a renúncia de outros quatro. Enquanto isso, a CPI dos Correios, em 2005, desvendou o esquema do mensalão, derrubou a cúpula do Partido dos Trabalhadores e rendeu a condenação criminal de políticos, empresários e banqueiros. “Somando-se exemplos como esses às incertezas a respeito do curso das investigações, governos não dormem no ponto nem se entregam à soberba do menosprezo em relação ao potencial tóxico das CPIs sobre seus destinos”, analisa Dora Kramer.
E complementa: “Quando aos exemplos e incertezas se acrescentam inúmeros indícios de que os alvos têm culpa no cartório, a situação inspira ainda maiores cuidados. É nessa condição que se encontra o presidente Bolsonaro. Sobram motivos para que o Congresso mergulhe na investigação das ações e omissões do governo federal e de desvios ocorridos em Estados e municípios na pandemia em curso, a fim de que sejam definidas com clareza as responsabilidades e imputadas com justiça as devidas punições. Portanto, a comissão parlamentar de inquérito proposta pelo Senado tem toda a razão de ser. Integra aquele grupo das CPIs imprescindíveis, tais como as já citadas, que furaram as bolhas de esquemas de corrupção sistêmica. Nessa agora, da pandemia, há a agravante de o prejuízo ser contabilizado em perdas de vidas. Se porventura ficarem estabelecidos dolos, estaremos diante de delito mais sério que roubo de dinheiro público”.
A palavra ainda é de Dora Kramer: “Além desse dado trágico, essa CPI talvez seja a que reúna maior quantidade de evidências sobre o fato determinado antes mesmo de começar. Tanto as ações cometidas quanto as omissões perpetradas no transcorrer da crise sanitária desde o seu início estão muito bem registradas nos atos e palavras do presidente da República e seus prepostos, o mesmo ocorrendo nos inquéritos que investigam ilícitos em repasses de verbas federais país afora. A investigação em comissão parlamentar, caso funcione de maneira efetiva, rigorosa e competente, bem entendido, certamente descobrirá mais. Ainda que não venha a revelar grandes novidades para além do já amplamente exposto, desvendaria meandros, organizaria e desenharia em contornos bem nítidos para o olhar da população (e posteriormente para exame de outras instâncias) o comportamento do poder público na pandemia”.
Dora Kramer conclui: “A CPI por si só não tem o condão de resolver os problemas. Não trará vacinas nem fará de Bolsonaro um líder capaz de inspirar comportamento social condizente com a crise. Mas conta com a força da visibilidade para mostrar o que poderia ter sido feito e o que não foi feito para minorar o alastramento do vírus, administrar melhor o sistema de saúde e, principalmente, estancar o ritmo alucinante de vítimas fatais do até agora maior mal do século”. O presidente Jair Bolsonaro tem plena consciência dos desdobramentos que essa CPI pode lhe acarretar e ao seu governo e é por isso que se movimenta para tentar uma sobrevida, se é que isto ainda é possível ou está no radar da grave conjuntura que o país enfrenta. Em última análise, Bolsonaro é um negacionista desmoralizado pela dimensão da pandemia. E ele sabe o quanto isso custa politicamente, em termos de desgaste. A CPI, para ele, é “nitroglicerina pura”, como mencionou Collor ao ser confrontado com um dos escândalos do seu governo, que foi derrubado no impeachment.