Linaldo Guedes
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Diz um ditado popular que quando a esperteza é grande, engole o dono. Parafraseando essa máxima, diríamos que em Literatura quando a inventividade é exagerada, engole o livro. Tenho recebido muitos livros ultimamente. Alguns exageram na criatividade com a linguagem, com a forma e esquecem do principal: o conteúdo. Em ficção, então, o que vai prender o leitor não será nunca a invenção pela invenção. Mas o enredo e como esse enredo está sendo passado para o leitor. Em seu primeiro romance, “No instante do céu”, publicado pela Editora Reformatório, Renato Tardivo consegue unir as duas pontas da literatura: a linguagem inventiva e o conteúdo.
Devo dizer, para os desavisados, que este é o primeiro romance de Tardivo, mas não é seu primeiro livro. O escritor publicou os livros de contos “Do avesso”, Silente” e “Girassol voltado para a terra” – este último cheguei a resenhar. Também publicou os livros de ensaio “Porvir que vem antes de tudo: literatura e cinema em Lavoura Arcaica” e “Cenas em jogo: literatura, cinema, psicanálise”. É, portanto, um autor que não só cria, como escreve e faz reflexões sobre o que os outros criam.
“No instante do céu” tem como narrador uma voz masculina, mas são as vozes femininas que dão o tom da obra em suas 152 páginas. E de maneira geral o narrador é meio que refém desse universo feminino. Primeiro da mãe, de quem reclamava de um convívio sufocante. Ele pensa que tem uma relação tensa com a mãe, mas na verdade quem tem é o pai.
Depois vem Beatriz. Essa que é, em tese, a motivação do romance. É sobre a história com Beatriz que se desenrola o enredo de “No instante do céu”. Com Beatriz, o personagem-narrador tem um filho, tem dores, alegrias, desejos suicidas. É uma relação tensa, como a da mãe com o paí. Uma relação que vive o tempo todo em conflito. Mesmo quando o casal está se amando, a impressão que fica para o leitor é que a qualquer momento a janela vai se abrir e Beatriz desaparecerá. Na verdade, ela nunca ensinou o narrador a não andar com os pés no chão.
Quem poderia fazer isso seria Carolina, mas esta, como na canção de Chico Buarque, não sai da janela, digamos assim. O certo é que se o narrador vê Carolina como se ela estivesse na janela, nós, leitores, a vemos como na canção “Vitrines”, que chega, mas some por ai. Quem não some é Iolanda, que chega ao final do enredo: “quando te vi, sabia que era certo”, cantaria o narrador. Renato Tardivo faz uma bela homenagem a Chico Buarque ao usar nome das canções do músico para suas personagens: Beatriz, Carolina e Iolanda.
Mas existe uma quinta personagem feminina no livro, que está desde as primeiras páginas e é a mais fascinante de todas. Trata-se da Tia Sebá. Esta quase não tem voz, quase não tem história, quase não tem importância no enredo. Mas ela é referência para o personagem-narrador o tempo todo. “Sonhar com água é morte, patroa”, alerta com sua sabedoria quase silenciosa. Só não é totalmente ignorada por conta das recordações de infância:
“Um dia, na infância, você vai à distante periferia em que tia Sebá mora. É véspera de Natal. Você ganha dela um helicóptero de plástico. Ela entrega o presente, desculpando-se por sua simplicidade. Você ganha o presente, culpando-se por ela ter se desculpado”.
Tia Sebá vive meio que à margem do enredo, mas o leitor vai reparar que ela está sempre lá, como se fora a consciência do narrador.
“No instante do céu” é um livro que alia reflexões e linguagem literária. O escritor intercala suas narrações com mensagens oriundas de redes sociais: Whatsapp, Facebook e Instagram. Cada mensagem dessas comanda um tempo diferente dentro do romance. A mensagem curta, telegráfica, suicida do whatsapp; a reflexão até melodramática do facebook e a indiferença estética do instagram. Tudo isso está no livro de Renato Tardivo. Com ou sem redes sociais.
É, sobretudo, um livro sobre instantes, sobre flashs, sobre fragmentos. Mas não são fragmentações soltas, não são fios desencapados. Há uma linha tênue que une todos os personagens ao narrador e toda narrativa ao leitor. Para mergulhar nela, basta agir como as formigas, que vão silenciosas de um lado a outro, carregando seus fardos diante da nossa quase indiferença. Não à toa, Iolanda classifica o narrador como um super-herói de formigas.
Linaldo Guedes é poeta, jornalista e editor. Com 11 livros publicados e textos em mais de trinta obras nos mais diversos gêneros, é membro-fundador da Academia Cajazeirense de Artes e Letras (Acal), mestre em Ciências da Religião e editor na Arribaçã Editora. Reside em Cajazeiras, Alto Sertão da Paraíba, e nasceu em 1968.