Nonato Guedes
Sempre lúcido e antenado nas reflexões sobre a evolução da pandemia de coronavírus no Brasil e no mundo, o neurocientista Miguel Nicolelis, em entrevista ao UOL, criticou o afrouxamento sem critérios científicos das medidas restritivas para conter o alastramento da doença no país. Segundo ele, o abre e fecha do comércio por uma ou duas semanas e sem um lockdown eficiente, como foi feito no Reino Unido, “destrói a confiança” da população. De acordo com o especialista médico, o brasileiro foi confrontado com a opção de “morrer de fome ou morrer do vírus”. Miguel Nicolelis foi consultor do chamado Consórcio Nordeste na tomada de decisões em momentos críticos da pandemia, mas sempre teve uma postura independente e crítica face à situação.
O diagnóstico agora formulado espelha a realidade verificada no Brasil, em Estados diferentes, onde gestores se debatem com impasses em torno da melhor alternativa para o enfrentamento simultâneo da crise sanitária e da crise econômica, esta agravada pelo desemprego, pelo fechamento de postos de trabalho, pela falta de perspectivas quanto à própria condição de sobrevivência de grupos sociais mais afetados pela epidemia. Nicolelis cunhou a expressão “efeito sanfona” para definir o modelo das medidas oficiais implementadas por autoridades a pretexto de combate à Covid 19. “Abre a sanfona, fecha, o que isso faz? Primeiro destrói a confiança da sociedade de que realmente alguma coisa está sendo feita para acabar a pandemia, porque você nem entende mais as cores, o que é roxo, amarelo, laranja”, afirmou.
E acrescenta: “As pessoas passam a desacreditar dessas medidas restritivas, e não é desprezível esse efeito. É o efeito psicológico que, literalmente, destrói a capacidade de você falar: “Temos que fazer lockdown de um mês”. Ainda de acordo com o cientista, a estratégia brasileira de enfrentamento do novo coronavírus erra ao priorizar critérios administrativas, em vez de epidemiológicos. “O problema é que nossa estratégia no Brasil, como eu apelidei, é uma estratégia sanfona porque quando a coisa chega muito grave aqui, e muito grave é de 95% de ocupação de UTI, o único critério que a maioria dos gestores olha é o administrativo. Você tem que olhar o número de casos, de óbitos, ver a taxa de transmissão, ver a dinâmica geográfica, o fluxo de pessoas. Mas quando se chega a um número absurdo, se fecha ou faz alguma coisa paliativa que dura uma semana ou duas”.
Nicolelis reproduziu o que ouviu, em alguns lugares, de pessoas comuns: “Só está 90% de ocupação, melhorou”. Como consequência dessa radiografia equivocada, acontece a abertura de shoppings centers, educandários, bem como o relaxamento das poucas medidas paliativas que até então haviam sido adotadas. “Com raríssimas exceções, na primeira onda, nunca fizemos um lockdown correto, como no Reino Unido”, explicitou Nicolelis, lembrando que o governo britânico ofereceu auxílio financeiro para que a população ficasse em casa e que o governo dos Estados Unidos também enviou cheques para parte da população. O Brasil falhou nesse quesito, na opinião do especialista. Aqui, na prática, o governo Bolsonaro puxou para cima (valores altos) o auxílio emergencial pago a pessoas em situação de vulnerabilidade, por demagogia e pela falsa ilusão de facilidade do Tesouro para cobrir as despesas. O erro de cálculo custou o próprio descrédito da imagem do governo, que teve de rebaixar valores para níveis insignificantes, gerando revolta dos extratos sociais vulneráveis.
Ainda é de Nicolelis a palavra: “O brasileiro foi confrontado com a opção que nunca deveria ter existido porque é desumana, criminosa, ou seja, com a opção de morrer de fome ou de vírus. Aqui as pessoas tiveram na primeira onda um auxílio que realmente ninguém consegue sobreviver com aquilo e, agora o auxílio é menor e mais restritivo. Por outro lado, o neurocientista entende que o país deveria ter feito um controle mais rígido de entrada nos aeroportos internacionais e pontua que o Maranhão não deve ser a única porta de entrada no país da cepa indiana (B.1.617.1) do novo coronavírus. Ontem, o Estado confirmou os seis primeiros casos no país. “A grande preocupação era evitar que essa variante chegasse ao Brasil porque tem causado um estrago tremendo na Índia. A identificação desses primeiros casos no Maranhão sugere que, primeiro, não deve ser a única porta de entrada e, segundo, gera uma preocupação muito grande porque é uma variação de interesse.
“Meu medo é que a gente menospreze o que aconteceu na Índia, o vírus venha com variantes embutidas e o sistema brasileiro já colapsado não dê conta”, expressou o neurocientista. Citou que no início da pandemia, participou de um estudo que mostrou que o não fechamento dos aeroportos internacionais brasileiros, em março do ano passado, foi decisivo para espalhar o vírus pelo Brasil. Todas essas considerações respeitáveis de uma figura emblemática como o doutor Miguel Nicolelis convergem para a constatação que já está se tornando repetitiva: o Brasil está perdendo a guerra do enfrentamento à pandemia porque o governo do presidente Bolsonaro foi insciente, incompetente e absolutamente despreparado para liderar o país no mutirão de combate ao coronavírus. Aliás, uma postura coerente com o negacionismo escancarado que ainda hoje Bolsonaro insiste em protagonizar, desrespeitando normas de segurança sanitária, como se deu esta no Maranhão.