Nonato Guedes
O assunto que repercute ainda é o encontro ocorrido entre os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a pretexto de “concertar” afinidades na defesa da democracia e contra a arrogância do bolsonarismo. Claro, houve afagos de parte à parte como antídoto para espantar divergências – que existem, entre eles. O que ficou evidente é que, para além dessas divergências há uma relação madura entre dois líderes, pontuada por expressões de respeito e admiração mútuas. Lula e FHC se confrontaram em disputas procurando manter o nível em proporções razoáveis para a própria opinião pública, e é possível que isto facilite aproximação. Mas um sucedeu ao outro na presidência da República (o metalúrgico assumiu por duas vezes depois que o sociólogo reinou também por dois mandatos), e não faltaram críticas de parte a parte, sem ferimento grave. Seria este o segredo da relação duradoura?
No “Dicionário Lula”, elaborado por Ali Kamel com pesquisa de Rodrigo Elias – “Um Presidente exposto por suas próprias palavras”, é denso o verbete “Fernando Henrique Cardoso”. Que começa assim, nas palavras de Lula: “Eu tenho relação de amizade com o presidente Fernando Henrique Cardoso de quando ele não era sequer eleito senador, ele era suplente de senador, eu tenho amizade com ele. Então, eu tenho que tratá-lo de forma civilizada, e ele a mim. No momento em que a gente tiver que ter disputa, vamos tê-la. Mas eu acho que tem muito mais momentos de confluência do que de disputas, porque a disputa se dá em momentos eleitorais”. Isto foi dito pelo líder de São Bernardo do Campo que conquistou o Brasil numa entrevista coletiva em Roma, Itália, no dia 8 de abril de 2005, quando Lula cumpria seu primeiro mandato no Palácio do Planalto.
Antes, em 2003, numa visita ao Retiro da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB em Itaici, São Paulo, o petista havia explicado: “Em 78, por exemplo, eu era totalmente apolítico. Seis meses depois, eu já estava apoiando Fernando Henrique Cardoso para candidato ao Senado aqui em São Paulo porque, na época, ele era um intelectual vindo do exterior, progressista, e era uma novidade”. Aqui dentro, a novidade no pós-regime militar de 64, a novidade era Luiz Inácio Lula da Silva, que sem maior formação intelectual mas com intuição política invejável e capacidade de “grande comunicador”, na definição de Ali Kamel, liderou greves antológicas que paralisaram o ABC paulista, tornou-se fenômeno político e constriu, na década de 80, um Partido dos Trabalhadores, que chamou a atenção de expoentes da esquerda na Europa e no Terceiro Mundo. Como disse Lula, ele aprendeu, não na universidade, mas no chão da fábrica, a negociar, a conversar com as pessoas, a respeitar as diferenças.
E as críticas a Fernando Henrique Cardoso? Muitas, muitas, até como estratégia para alimentar o confronto entre o metalúrgico e o sociólogo. Em 2003, numa entrevista à TV Bandeirantes no Palácio da Alvorada, Lula mandou ver, a propósito da reeleição de FHC: “A minha tese é a seguinte: alguém só pode ser candidato à reeleição se ele perceber que, no segundo mandato, ele poderá fazer mais do que no primeiro. Porque se ele tiver consciência que não pode, não seja louco, não seja candidato, porque vai afundar. Foi o que aconteceu com nosso amigo Fernando Henrique Cardoso. O segundo mandato foi muito ruim, se comparado ao primeiro”. Mas Lula, num jantar em Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, em 2004, deu a mão à palmatória: “Mesmo com divergências que eu e qualquer um da minha equipe possamos ter com o presidente Fernando Henrique Cardoso, nós todos reconhecemos que a eleição de Cardoso foi um avanço extraordinário para a democracia brasileira, pela qualidade intelectual dele, pelos compromissos históricos dele”.
Lula costuma dizer que em 1980 o Brasil conheceu a greve histórica mais importante do país, que foi a famosa greve de 41 dias feita pela categoria metalúrgica do ABC paulista e que culminou com a consolidação do processo democrático brasileiro. Houve uma manifestação no dia primeiro de maio daquele ano e o secretário de Segurança de São Paulo, Erasmo Dias, não queria permitir que ela ocorresse na Igreja Matriz. Havia cheiro de confronto no ar – eram mais de seis mil pessoas reunidas e vinte mil policiais no meio. Vários políticos, entre eles Fernando Henrique Cardoso, intervieram para que o evento fosse permitido na Igreja porque, do contrário, haveria uma chacina no centro de São Paulo. Por outro lado, em suas memórias, distribuídas por pelo menos cinco livros volumosos, FHC rememora gestões de que fez parte, no papel de “intelectual orgânico” em episódios como o da prisão de Lula e seu enquadramento com base na Lei de Segurança Nacional.
Talvez advenha desses gestos concretos de aproximação e respeito a relação civilizada que ainda hoje é cultivada pelos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso. É uma relação com direito a farpas. Como essa estocada de Lula, numa entrevista em 2007 a jornalistas brasileiros e estrangeiros em Brasília: “De vez em quando eu vejo o presidente Fernando Henrique Cardoso dizer que eu não o convidei para conversar. É importante lembrar que ele também só me convidou depois que eu fui derrotado em 1998, e eu sempre tive relação de amizade com o Fernando Henrique Cardoso. Eu não tenho porque não conversar com ele. Se ele acha que eu errei em não convidá-lo, não será por falta de convite que a gente não vai conversar”. Foi o que eles voltaram a fazer, depois de quatro anos de distanciamento e de uma jornada crucial para Lula, que ficou preso por 580 dias na superintendência da Polícia Federal em Curitiba. Desta feita, Fernando Henrique está de pijama – não é candidato a nada. Lula está por cima da carne seca: foi solto, conseguiu anular condenações contra ele, recuperou o direito de elegibilidade e é candidatíssimo ao Planalto em 2002. Com promessa de voto de FHC num segundo turno, se este ocorrer contra Bolsonaro, conforme as projeções a dados de hoje.