Nonato Guedes
Conforme a pertinente observação de analistas políticos da mídia sulista, as manifestações do fim de semana contra o presidente Jair Bolsonaro traduziram derrotas para o governo que contribuem para aprofundar o seu desgaste e a situação de isolamento em que tem se colocado. Em análise no G1, o blog do Octavio Guedes enfatiza que a extrema direita perdeu o monopólio das ruas, lembrando que a pandemia sempre jogou a favor de Bolsonaro e que há um ano ele estimula seus seguidores a sair de casa e defender teses antidemocráticas como a intervenção militar sem se preocupar com as acusações de promover aglomerações e desestimular o uso da máscara. Da mesma forma, o bolsonarismo perdeu eficiência nas redes sociais, em comparação com atos públicos, até gigantescos, que conseguiu patrocinar.
As redes sociais de apoio ao mandatário, como destaca o mencionado blog, abusaram das fake news, usaram vídeos antigos para passar a ideia de que quem era contra Bolsonaro defendia Sodoma e Gomorra. “Conseguiram ressignificar o protesto como sendo uma manifestação contra a família e os bons costumes. Mas, no último sábado não foi assim. A milícia digital bolsonarista está menos efetiva”, acrescenta Octavio Guedes. No reverso da medalha, cria-se um problema para a oposição: ela não poderá mais condenar atos políticos de aglomeração de Bolsonaro com a mesma ênfase de antes. Este foi o grande dilema no último ano: como resolver a contradição de promover aglomeração para chamar um presidente de genocida porque ele, entre outros problemas, promove aglomeração?
A solução para o impasse foi enfrentada com dois discursos: 1) Bolsonaro mata mais que o vírus; portanto, vale a pena arriscar a sua vida para salvar a de milhares de pessoas; 2) É possível fazer aglomeração, reduzindo os riscos, com distanciamento e uso de máscaras. “Distanciamento e passeata não combinam. Mas o número de pessoas com máscaras era infinitamente maior do que nas manifestações bolsonaristas. Não dá nem para comparar. E esse é o dado curioso: usar máscara é ato civilizatório. Não é de direita nem de esquerda porque o vírus ataca sem pedir atestado ideológico. Mas, no Brasil, usar máscara virou posicionamento político”, interpreta Octavio Guedes. Ele conclui que das manifestações sobressaiu ainda um alerta ao estado democrático de direito, diante da repressão aos manifestantes, com aval de governadores, como se deu em Recife e no Rio de Janeiro.
As oposições, é claro, dividiram-se – como de praxe – quanto às manifestações de rua convocadas para o último fim de semana – e o próprio ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) evitou incentivá-las através de redes sociais ou outros canais de comunicação, temendo desdobramentos imprevisíveis. A verdade é que a estratégia de não reforçar os atos estava inserida na lógica do medo quanto a consequências desastrosas numa conjuntura em que a pandemia de coronavírus ainda é ameaçadora em diferentes regiões do Brasil e em que o Plano Nacional de Vacinação não avançou no ritmo desejado devido às trapalhadas, até diplomáticas, cometidas pelo governo Bolsonaro junto a países que poderiam socorrer o País no estágio de calamidade a que é submetido. Sem falar que agrupamentos como os petistas têm sua própria tática, fundada na ideia de “sangrar” Bolsonaro até as eleições do próximo ano, quando ele tentará a reeleição e poderá sofrer a mais acachapante derrota da sua trajetória política até aqui.
Enfrentar Bolsonaro nas ruas, território que ele julgava dominar, e nas redes sociais, onde o monopólio dos extremistas de direita sempre foi irritante e sem conteúdo, constituiu – noves fora os incidentes – um ato de resistência necessário, tanto mais válido pelo contraponto que demonstrou em relação às manifestações dos xiitas bolsonaristas, pela preocupação com protocolos de segurança sanitária em plena crise de Covid-19 e seus números alarmantes. As manifestações contra o governo deverão se acelerar a partir de agora, com um objetivo determinado: extrair a fórceps o impeachment do presidente, que tem sido protelado ou engavetado na Câmara dos Deputados desde a gestão de Rodrigo Maia, do DEM, que entrou para a História de forma melancólica, por gestos de covardia em momentos decisivos.
É claro que entre setores da opinião pública não há ilusões quanto a um comportamento independente do atual presidente da Câmara, Arthur Lira, do PP, expoente do “Centrão”, que foi eleito para o cargo com o apoio irrestrito do presidente da República na condição de se alinhar com o projeto continuísta, apesar dos resquícios genocidas em ações de governo. Mas a avaliação que ganha corpo entre segmentos da sociedade é a de que se a pressão popular crescer, tornando-se irresistível, forçará Arthur Lira a se render à voz rouca das ruas e acionar a engrenagem do processo que pode levar ao impeachment do mandatário. Como já declarou o próprio sucessor de Rodrigo Maia, “remédios políticos podem ser utilizados, são conhecidos e todos amargos: alguns, fatais”. Em última análise, um impeachment de Bolsonaro não será o primeiro na história do Brasil – mais precisamente, será o terceiro, depois do que aconteceu com Fernando Collor e Dilma Rousseff sem que as instituições democráticas tivessem colapsado em virtude do trauma do ritual amargo ou doloroso.