Nonato Guedes
Ex-ministro da Saúde, com uma passagem desastrosa pela Pasta em plena pandemia do novo coronavírus, o general Eduardo Pazuello aceita sem contestação – muito pelo contrário – representar o papel de “pivô” de uma crise que divide claramente as Forças Armadas e que foi incentivada pelo presidente da República, o capitão reformado Jair Bolsonaro, agindo como “vivandeira de quartéis”, tal como se referiam militares remanescentes do movimento de 64 a políticos com vocação golpista. Protegido de Bolsonaro, Pazuello saiu ileso de uma infração disciplinar que cometeu ao participar de manifestação política em apoio ao presidente, o que foi pessimamente recebido por generais, tanto da ativa como da reserva. O episódio já arranhou a imagem da instituição das Forças Armadas depois que o comandante Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira deixou impune o general Pazuello. Que acabou premiado com uma sinecura em Secretaria Estratégica vinculada à presidência da República.
A crise interessa a Bolsonaro porque ele sempre lutou para ser reconhecido como comandante em chefe das Forças Armadas, dada a sua condição de presidente da República, atendo-se – o que é incomum na sua biografia – a um mandamento constitucional. As reações na esfera militar da ativa contra a manobra orquestrada por Bolsonaro estão sendo vocalizadas, por razões óbvias, “em off”, só tendo se manifestado pela mídia oficiais da reserva que detêm prestígio mas não influência na conjuntura atual. Mas a repercussão trai um tom de preocupação com a sorte do próprio Bolsonaro e do seu governo, por estarem enfrentando sinais inequívocos de impopularidade ou rejeição e, simultaneamente, uma desgastante Comissão Parlamentar de Inquérito, que apura preferencialmente omissões e até crimes de responsabilidade porventura cometidos pela gestão federal.
Bolsonaro busca se segurar no cargo contando com o apoio fisiológico (ou covarde), de senadores e deputados federais que até hoje não deram ouvidos a pouco mais de uma centena de pedidos de impeachment sugeridos contra o presidente da República por parte de organismos de expressão da sociedade civil. Em outra frente, valendo-se dos vínculos com a tropa, Bolsonaro procura escudar-se nas Forças Armadas para um projeto continuísta que começa seriamente a inquietar setores democráticos pelo caráter golpista de que ele se reveste e que seria absolutamente intolerável na conjuntura de liberdades que o País alcançou uma vez virada a página do movimento de 1964. À primeira vista, o generalato está ressentido mas tende a se manter disciplinado. Em contrapartida, o baixo oficialato, sempre mais afoito, na visão de alguns analistas, agora estaria à vontade para seguir os passos rebeldes de Pazuello.
A colunista Thaís Oyama, do UOL, depois de indagar o que de pior poderia surgir do caldo de cultura, ouviu de um oficial conhecedor da História e do bolsonarismo: “Um maluco disposto a botar a tropa na rua, por exemplo”. E arremata a colunista: “1964 já provou que eles existem”. Uma referência, é claro, ao coronel Olympio Mourão, que praticamente deflagrou a intervenção de março de 1964 ao sair rebelado, de Minas Gerais, contra o governo constitucional do presidente João Goulart. O enredo desse capítulo funesto para a história brasileira é conhecido da grande maioria – acabou legando ao país 21 anos de regime autoritário, contra todas as promessas alardeadas de compromisso com a defesa da democracia. Bolsonaro já demonstrou que, apesar de ter chegado pelo voto à presidência da República, conjura contra a democracia e menospreza as instituições que fazem parte do arcabouço institucional do país. Um exemplo recorrente é a sua investida contra o Supremo Tribunal Federal.
Antonio Carlos Prado, na revista “IstoÉ”, opina que Bolsonaro vai perder a parada, explicando que o xadrez político não é muito diferente do xadrez de tabuleiro. “Se o capitão queria trazer à força o Exército para o campo político, o máximo que conseguiu foi trazer um general sem expressão e liderança. Fez de um oficial general um general oficial”, acrescenta. Para ele, se o Exército tivesse punido Pazuello, Bolsonaro, como comandante em chefe das Forças Armadas, revogaria a punição e a crise estaria aberta, com o Exército no terreno da política. Agindo como agiu, o Exército teria deixado Bolsonaro só com Pazuello, “só com um zero à esquerda”, conforme Antonio Carlos Prado. Ao mesmo tempo, analisa que o Exército não fez o jogo de entrar na política e, supostamente, teria desgastado Bolsonaro junto à instituição. A anarquia que seria causada só interessava a Bolsonaro – e o colunista pontua que o presidente não conseguiu a radicalização que queria.
Seja como for, o episódio de agora é denunciador, pelo menos, do perigo que o presidente Jair Bolsonaro continua representando sistematicamente para as instituições democráticas brasileiras. É perigoso, sim, porque não tem compromisso com elas nem com o credo do Estado de Direito, que demandou epopeias da sociedade civil. A crise militar e o confronto idealizado por Bolsonaro, valendo-se do ex-ministro Eduardo Pazuello como um instrumento, podem ter sido abortados pela falta de ânimo quanto a enfrentamentos no próprio circuito das Forças Armadas. Fica o alerta, porém, de que todo cuidado é pouco, toda vigilância é necessária para que as forças antidemocráticas não conquistem espaço nem o Exército se torne refém de aventuras golpistas que desqualificam seus autores e jogam o Brasil no terreno pantanoso do impasse histórico.