Nonato Guedes
Apesar da negativa do governador João Azevêdo (Cidadania) quanto a um possível estremecimento de relações entre ele e o prefeito de João Pessoa, Cícero Lucena (PP), o assunto ganhou inevitável repercussão nos meios políticos e na mídia jornalística, dando origem a especulações sobre desalinhamento político entre eles na disputa do próximo ano, quando o gestor estadual tentará a reeleição. O pretexto para o abalo entre os dois líderes teria sido a divergência técnica entre equipes de Saúde do Estado e do Município sobre critérios para o chamado “abre e fecha” de atividades comerciais ou essenciais na nova fase de agravamento da pandemia de Covid-19. Tem sido travada o que a Associação Paraibana de Advocacia Municipalista qualificou de “verdadeira guerra jurídica” entre Poderes, com edição de decretos contendo medidas restritivas e apelos a instâncias superiores da Justiça para dirimir dúvidas agitadas a respeito.
O fato surpreendente em todo esse enredo, na avaliação de líderes políticos, não foi a tecnicalidade jurídica, que em escala maior opõe o próprio presidente da República, Jair Bolsonaro, a governadores de Estados, sobre competências para fixar ou não decisões impositivas na pandemia, mas o “ponto fora da curva” no entrosamento pessoal entre o governador João Azevêdo e o prefeito Cícero Lucena. Na campanha de 2020, em pleno processo de rompimento com o antecessor Ricardo Coutinho (PSB), Azevêdo protagonizou uma guinada política-ideológica e encampou a candidatura de Cícero para um terceiro mandato na prefeitura da Capital, saindo ambos vitoriosos em meio a um segundo turno renhido contra a candidatura do comunicador Nilvan Ferreira, então no MDB. Uma vez investido Cícero na prefeitura, a relação entre gestão estadual e gestão municipal foi além da formalidade institucional, traduzindo-se em sintonia fina e em gestos recíprocos de harmonia ou de entendimento, contrastando com cenário até então vigente. A afinidade estreita foi saudada como positiva para encaminhamento dos projetos de interesse da população pessoense e Cícero chegou, mesmo, a firmar declaração de apoio e voto à reeleição de João, como ato legítimo de reciprocidade.
O clima de entendimento, que num primeiro instante gerou desdobramentos, com efeitos positivos em outros municípios da Metro, a chamada região metropolitana polarizada por João Pessoa, despertou ciumada junto a prefeitos de outras cidades importantes, como se deu com reações de Bruno Cunha Lima (PSD), eleito em Campina Grande e ligado ao grupo do ex-prefeito Romero Rodrigues, virtual candidato ao governo em 2022, e do ex-senador Cássio. Bruno tornou-se beligerante nos primeiros meses em que havia assumido o comando do executivo da Rainha da Borborema, sentindo-se discriminado por parte do governo estadual, que, na sua ótica, só privilegiava a Capital. Isto o levou a buscar atalhos para não depender do governador, abrindo canal direto com o Palácio do Planalto, até para obtenção de vacinas. Valeu-se, para tanto, da influência do “ex” Romero Rodrigues junto a Bolsonaro (os dois foram colegas na Câmara Federal) e do prestígio do ex-senador Cássio junto ao presidente da República. Nos últimos dias, acossado por índices alarmantes de casos de Covid na região polarizada por Campina, Bruno expediu “S.O.S” ao governo do Estado para auxiliá-lo na tarefa árdua de combate à calamidade.
De acordo com o governador João Azevêdo, não há propriamente uma atmosfera de disputa por monopólio de decisões restritivas atinentes ao combate à pandemia. “Da mesma forma, imaginar que alguém venceu ou perdeu é diminuir muito a dimensão do problema”, acrescentou o chefe do Executivo estadual que, não obstante, com a assertiva, procurou reduzir a proporção dos impasses que ganharam espaço na mídia a uma questão de entendimento técnico de cada gestor. Nos bastidores, apurou-se que tentativas de diálogo entre equipes de Saúde do Estado e prefeitura municipal resultaram infrutíferas, e algumas reuniões chegaram a ser pontuadas pelo tom de agressividade nas colocações. Prefeitos ligados a Cícero, como, por exemplo, o de Cabedelo, Vítor Hugo (DEM), têm contribuído para acirrar os ânimos, com insinuações sistemáticas de “falta de diálogo” por parte do Executivo estadual com os prefeitos.
Para alguns analistas, é possível que esteja se formando, realmente, uma tempestade em copo d’agua nesse episódio de enfrentamento – que supera a mera divergência – entre governo do Estado e prefeitura de João Pessoa. O assunto acabou sendo judicializado – e era inevitável que isto acontecesse, diante do choque de versões no teor de decretos expedidos afetando atividades que estão associadas à sobrevivência da população. Mas há sempre a impressão de que havia campo de manobra para conciliar posições sem a necessidade da radicalização ou da judicialização do problema. Se faltou isto, foi porque a relação entre o governador e o prefeito já estava no limite do desgaste, e, também, da própria exaustão que a estratégia de prevenção e combate ao coronavírus tem ocasionado entre autoridades do serviço público e entre profissionais que atuam na linha de frente para debelar focos preocupantes de contágio que são embriões da engorda de estatísticas alarmantes.
Independente de desdobramentos políticos da querela, é preciso ter em vista que, no final das contas, todos os gestores, do governador ao prefeito da menor cidade do território paraibano, estão comprometidos com responsabilidades que precisam encarar, não só com vistas a proteger as respectivas populações, com medidas efetivas de controle e combate à Covid-19 mas com outras soluções que contemplem o mundo paralelo impiedosamente afetado pela doença, no qual se inclui a crise econômica e social, cujo alcance ainda é, estranhamente, minimizado por alguns círculos sociais e de poder. Sabe-se que “bombeiros” entraram em ação nas últimas horas, depois que os acontecimentos tomaram uma proporção inimaginável no contexto da realidade paraibana. O ruído, em todo caso, foi grave, restando saber se não terá passado de um mero desentendimento administrativo pontual ou se é mesmo sinal de turbulências maiores que estavam represadas por conveniências de ocasião.