Nonato Guedes
Chamada de “circo” pelos adversários do presidente Jair Bolsonaro, a CPI da Covid instalada no Senado Federal já escancarou contradições sobre a postura do governo federal no enfrentamento à pandemia, em depoimentos prestados por ex-ministros e por especialistas em Saúde Pública, comprovando-se que houve omissão em momentos cruciais e que isto contribuiu para a perda de vidas. Não dá para prever qual será o desfecho dessa CPI, do ponto de vista do poder de responsabilização do presidente da República e do desencadeamento de punições legais. Mas uma coisa é certa: o barulho produzido pela Comissão até agora já foi suficiente para desgastar o atual governo, afetando a sua imagem interna e externamente. E as revelações bombásticas ou explosivas poderão causar reflexos na disputa eleitoral do próximo ano, quando o presidente concorrerá à reeleição.
O Palácio do Planalto, que lutou desesperadamente para inviabilizar a criação da CPI e que ficou em minoria no seu âmbito, quando o fato foi consumado, tenta desqualificar o trabalho da Comissão alegando que ela se nutre de injunções políticas e utiliza de dois pesos e duas medidas ao não se mostrar tão rigorosa com governadores e prefeitos quanto o é com a presidência da República. Não é preciso alardear que a comissão tem um relator, o senador Renan Calheiros, do MDB-AL, cuja biografia nem de longe é primorosa e que tem um irmão governador, em Alagoas, que ainda pode sair arranhado no relatório final a ser produzido, dependendo de evidências que forem colhidas. Mas isso não basta para desmerecer o que foi dito e apurado até agora, nos debates acalorados que têm sido travados e acompanhados atentamente pela mídia. Em funcionamento desde abril, a CPI conseguiu ir longe no período de um mês e meio de depoimentos e numa conjuntura excepcional causada pela persistência da pandemia. Não foram poucas, afinal, as vozes contrárias à sua instalação, receosas de agravamento da crise sanitária como reflexo do tiroteio que a cada semana envolve parlamentares.
Um levantamento feito pelo G1 destaca que os depoimentos até agora apontaram que; 1) O governo Bolsonaro tem um suposto “aconselhamento paralelo” na gestão da pandemia e que Carlos Bolsonaro, vereador do Rio e filho do presidente, participava de reuniões; 2) Houve uma tentativa de mudar a bula da cloroquina, medicamento sem eficácia contra a Covid, mas defendido pelo presidente; 3) Propostas da Pfizer de venda de vacina ao governo federal ficaram meses sem resposta, configurando caso de leniência administrativa em plena calamidade; 4) Ofertas da Coronavac foram recusadas pelo governo. Quando a intenção de compra ia ser anunciada, as negociações pararam após críticas de Bolsonaro; 5) O Ministério da Saúde soube, no dia 7 de janeiro, sobre a falta de oxigênio no Amazonas, antes do que havia sido informado pela Pasta; 6) O governo federal chegou a discutir, mas descartou uma intervenção federal na saúde no Amazonas, onde estourou uma tragédia.
Foram ouvidos pela CPI os ex-ministros da Saúde Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, o atual titular da pasta, Marcelo Queiroga, o diretor-presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres, o ex-secretário de Comunicação da Presidência Fábio Wajngarten, e o gerente-geral da Pfizer para a América Latina, Carlos Murillo. Também depuseram os ex-ministros Ernesto Araújo, das Relações Exteriores, e Eduardo Pazuello, da Saúde. Senadores apontaram contradições nos depoimentos deles e os acusaram de mentir à CPI. Por essa razão, foi aprovada a reconvocação de Pazuello, como também decidiu-se pela reconvocação de Queiroga, que já foi ouvido e, pelo visto, não satisfez em respostas cruciais feitas por senadores. Foram relacionadas, pelo menos, 15 “mentiras” atribuídas ao general Pazuello, que, inclusive, foi blindado por Bolsonaro num outro cargo no governo federal.
Um dos depoimentos mais explosivos teria sido o da médica Luana Araújo, que teve seu nome barrado para assumir a Secretaria Extraordinária de Enfrentamento à Covid-19 do Ministério da Saúde. Mas a grande polêmica que está vazando para a opinião pública diz respeito ao chamado “gabinete de aconselhamento” porque pressupõe que decisões sobre questões graves da vida nacional estavam sendo tomadas à margem da Lei. Sobre esse ponto específico, o ex-ministro Mandetta contou que as orientações do gabinete extraoficial iam na contramão do que a sua pasta, responsável pela área, defendia em relação às regras sanitárias, como o distanciamento social. Mandetta também disse que viu diversas vezes Carlos Bolsonaro participando e fazendo anotações em reuniões ministeriais. Pazuello e Queiroga tergiversaram a respeito – o primeiro de forma mais incisiva.
Por mais que o presidente Jair Bolsonaro venha a distorcer a narrativa correta de episódios contados e recontados na Comissão Parlamentar de Inquérito, parece fora de dúvidas que o presidente e seu governo não sairão ilesos em meio à gravidade de acusações, muitas delas confirmadas por representantes de laboratórios ou agentes políticos com trânsito em governos de países com que o Brasil tentou ensaiar negociações a respeito da aquisição de vacinas e da compra de outros equipamentos indispensáveis à estratégia de combate à pandemia. O governo Bolsonaro sairá chamuscado. Resta saber quais governos estaduais também serão atingidos com as labaredas de uma CPI que, embora pareça um “circo” aos olhos do Planalto, é fundamental para espalhar um Raio X da trágica conjuntura que o país atravessa nestes tempos. O impeachment pode não vir, como não veio até agora. Mas as fagulhas de desgaste poderão produzir, sim, um apagão de Bolsonaro nas urnas nas eleições do próximo ano.