Nonato Guedes
São cada vez mais claros os sinais de que o presidente Jair Bolsonaro manipula ardilosamente as instituições no Brasil para fazer avançar a sua estratégia golpista, contra a democracia, e é intrigante que essa marcha siga infatigável, sem ser detida. A cada semana Bolsonaro elege um mantra para revelar suas intenções de desestabilizar o País – e é incrível que suas manifestações ora sejam subestimadas, ora sejam ignoradas, apesar da gravidade de que se revestem e da impunidade que as acobertam. Há grupos dentro da sociedade que resistem na denúncia da mistura de populismo, golpismo e autoritarismo gravitando em torno do mandatário, mas ainda não ecoaram com força a ponto de estancar a escalada inquietante do capitão reformado, o que torna o Brasil, aos olhos do mundo, uma nação irreversivelmente surrealista.
A “última” de Bolsonaro foi defender uma campanha nacional para acabar com o uso de máscaras em plena pandemia do coronavírus, a pretexto de que está em curso a vacinação – omitindo, de propósito, que não é uma vacinação em massa, muito menos caracterizada por planejamento e articulação com governos estaduais e prefeituras municipais, o que poderia dar impulso maior à imunização. Igualmente não há esforço concentrado na luta por aquisição de vacinas que beneficiem os diferentes grupos sociais vulneráveis da população – pelo contrário, há uma estratégia errática, que com frequência esbarra na falta de diplomacia do governo federal para demandar gestões nesse sentido. O governo sobrevive da espetacularização de fatos, mas ultrapassando perigosamente a linha da normalidade, como se deu com o “aceite” para realizar a Copa América, apesar das condições sanitárias ainda adversas.
O cenário é tanto mais desalentador para a sociedade brasileira porque está convulsionado por uma Comissão Parlamentar de Inquérito, instalada no Senado Federal, com a chancela do Supremo Tribunal Federal, e que tem se mostrado importante para escancarar os erros e a omissão que Bolsonaro e seu governo têm praticado desde a eclosão da pandemia de Covid-19. A humilhação imposta por Bolsonaro ao seu Ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, quando este tenta se posicionar na linha da Ciência e do “bom senso”, é outro capítulo lamentável – para a biografia do próprio ministro, que, não obstante, manifesta apego excessivo ao cargo, e para a imagem brasileira no exterior. Convém lembrar um pequeno exemplo, refletido no fato de que turistas brasileiros, mesmo que estejam vacinados, são encarados com desconfiança ou até mesmo impedidos de circular em outros países, que recebem informações nada auspiciosas sobre o quadro de balbúrdia em vigor sob a batuta de Bolsonaro e seus ministros amestrados.
Uma reportagem publicada pela revista “IstoÉ” detalha os ataques sucessivos do presidente Jair Bolsonaro contra instituições como o Supremo Tribunal Federal, o Congresso e os órgãos de comunicação, enveredando, ultimamente, pela quebra da disciplina no Alto Comando do Exército, ao não permitir punição ao general da ativa Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, flagrado em aglomerações e sem uso de máscaras, contrariando normas legais. O líder do governo na Câmara e prócer do Centrão, Ricardo Barros, antecipou como vai ser a confrontação direta com o STF: “Vai chegar uma hora em que vamos dizer que simplesmente não vamos cumprir mais”, declarou, referindo-se à decisão da Corte que obrigou a realização do Censo de 2020. Na prática, conforme a reportagem da “IstoÉ”, o parlamentar vocalizou o que os bolsonaristas realmente desejam: atropelar o Judiciário e governar sem amarras, de forma ditatorial. De forma muito óbvia, o presidente do Supremo, Luiz Fux, teve que lembrar: “O respeito a decisões judiciais é pressuposto do Estado Democrático de Direito”.
A politização das Forças Armadas, conseguida por Bolsonaro, é outro fato que chama a atenção, pela gravidade que encerra. “Ao sairem da linha legalista que adotaram desde a redemocratização, as Forças Armadas regrediram mais de meio século. Os historiadores avaliarão no futuro se o ciclo de normalidade democrática pode ter sido um breve intervalo dentro de uma longa história de crises institucionais. Mas o próprio debate atual sobre o caso representa uma volta aos conturbados anos 1950 e 1960. Em 1955, um presidente em exercício se recusou a punir um coronel que defendeu um golpe contra o presidente eleito Juscelino Kubitscheck. Nos anos que antecederam o golpe de 1964, caciques políticos tentavam influenciar comandos regionais e tinham oficiais de predileção. O próprio regime militar foi alvo de tentativa de golpe interno, em 1977, pelo antigo ministro do Exército, Sylvio Frota, que não aceitava a abertura política”, historia a reportagem da “IstoÉ”.
Bolsonaro investe em todas as frentes possíveis para se sustentar nas asas do golpismo e do autoritarismo. Como faz quando nega o próprio resultado eleitoral de 2002, sendo parte dessa estratégia a postura de deslegitimar as urnas eletrônicas. Como situa apropriadamente a reportagem da revista, a ideia é instilar dúvidas sobre a lisura do processo para permitir a intimidação de grupos de pressão contra um eventual resultado desfavorável ao presidente no próximo ano, cenário que se torna cada vez mais provável. Bolsonaro, para dar respaldo à sua narrativa fantasiosa, passou a dizer que o pleito de 2018, em que venceu, foi fraudado, sem qualquer evidência. “Fui eleito no primeiro turno. Tenho provas materiais disso, mas a fraude que existiu, sim, me jogou para o segundo turno”. Daí a insistência na aprovação do voto impresso antes da eleição de 2022. Se os verdadeiros democratas não reagirem em tempo, estarão abrindo caminho para a ressurreição do autoritarismo que se acreditava expurgado da história do País.