Linaldo Guedes
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Uma das canções mais bonitas de Caetano Veloso está no disco “Velô”, de 1984. Trata-se de “O Homem Velho”, onde o artista baiano de certa forma idealiza a velhice, ao afirmar que “o homem velho é o rei dos animas”. Lembrei-me desta música ao ler “Velhos”, novo livro de contos da escritora carioca Alê Motta, publicado pela Editora Reformatório. E lembrei justamente porque a obra de Alê Motta é o oposto do lirismo idealizado da música de Caetano. A autora de “Interrompidos” constrói, nesse seu novo livro, uma espécie de kitsch às avessas sobre os idosos.
Entre as definições do kitsch, está o do exagero sentimentalista, melodramático e sensacionalista. Não vejo isso no livro de Alê Motta. Pelo contrário. Os contos de Alê são extremamente realistas e crus. Chegam a chocar pela ausência de delicadeza na forma como aborda os vários dia-a-dias dos idosos, dos velhos. Alê desmitifica a velhice, ao mostrar em sua ficção que os velhos, como todos nós, humanos, cometem atos desabonadores em relação a ètica, ao caráter, enfim. Não há nenhuma mentira nos textos de Alê Motta e lógico que sabemos disso. Mas quem espera encontrar nas 136 páginas do livro contos tratando os velhos como coitadinhos, vai se enganar profundamente.
Como diz o premiado Itamar Vieira Júnior, nas orelhas, em “Velhos” as personagens não estão mergulhadas em reminiscências de uma vida passada, como quase sempre vemos na literatura. “Antes de tudo, elas fazem de seu declínio atual matéria para nos contar boas histórias em textos que carregam em sua brevidade a marca humana”, comenta.
São contos breves, como é a brevidade da vida quando chegamos a determinada idade. Alê Motta é direta em seus textos, sem buscar floreios em suas narrativas. Sabe aquela coisa de prosa poética, que muitos autores usam e abusam em suas obras? Ou a linguagem inventiva tentando se tornar um novo Guimarães Rosa? Alê Motta não vai por nenhum desses caminhos. Ela se revela, na verdade, uma grande contadora de histórias, que, afinal, é disso que se faz um bom ficcionista, né? Você vai passeando pelos diversos contos da obra num ritmo que dá para você terminar logo a leitura. É como se um conto puxasse outro, embora as estórias e as personagens sejam completamente diferentes umas das outras. A leitura flui, sobretudo, porque Alê é uma escritora de qualidade, com uma prosa clara, bem construída que consegue manter o suspense mesmo quando são contos breves.
Falemos um pouco de alguns deles. Em “Herança”, primeiro conto do livro, parece que estamos vendo o tiozão do zap, aquele personagem que todos temos na família e que nos legou o Brasil genocida de hoje. Falo de um velho inconveniente e que agride todos da família com seu comportamento. Vejam como Alê Motta descreve essa personagem:
“Ele tem olhinhos azuis, cabelo todo branquinho, é gorducho e caminha pulando. Quem olha de longe vê um velho fofo. Quem convive de perto está louco para ir ao seu funeral”.
E continua:
“Ele maltrata a vovó. Chama de lesada, define as roupas que ela deve usar e onde pode ir. Se e quando pode ir. E com quem. Joga o prato no chão se a comida não está do jeito que quer. Ela não reage”.
Os velhos dos contos de Alê Motta têm todos um pouco dessa característica do que chamei de tiozão do zap. Em “Desculpas”, segundo conto do livro, um velho preto e rico é a personagem principal. Ele mora bem, mas como toda pessoa de cor no Brasil é tratado como criminoso em determinado momento da narrativa. Em “Lucros”, a comicidade dá o tom ao narrar a história de um velho gordo que fica famoso após ser filmado quando quebrava a balança de uma farmácia. Em “Emoções”, a busca pelo direito ao voto na velhice. Em “Visitas” a forma mais homicida de se livrar de um sobrinho. Em “Notícias”, a repórter comemora a morte do velho cambalacheiro que era seu avô. Em “Esquecimentos”, o alzhemeir de cada dia dos idosos. Em “Decisões”, o cadeirante que planeja o suicídio. Em “Apostas, a rotina em um asilo de velhos.
Tenho um escritor amigo que costuma dizer, entre um gole ou outro de vinho, que o escritor precisa ser cruel, sem medo de expor as facetas mais ridículas, insanas, estúpidas ou violações de caráter de suas personagens. É mais ou menos isso que faz Alê Motta nessa obra, como no conto que narra a morte de um velho cagando, com as calças arriadas no sanitário. Mas seu livro é muito mais do que isso. É uma obra que nos alerta para os preconceitos que temos em relação aos velhos, aponta nossos falsos moralismos e mostra que nossos velhos vivem como nós, seus filhos, sem o vigor da idade, claro. Ao contrário da música de Caetano, os velhos de Alê Motta sabem que não são imortais.
Linaldo Guedes é poeta, jornalista e editor. Com 11 livros publicados e textos em mais de trinta obras nos mais diversos gêneros, é membro-fundador da Academia Cajazeirense de Artes e Letras (Acal), mestre em Ciências da Religião e editor na Arribaçã Editora. Reside em Cajazeiras, Alto Sertão da Paraíba, e nasceu em 1968. É membro, também, da União Brasileira dos Escritores – Seção Paraíba.