Nonato Guedes
Conforme anunciado, o ‘superpedido’ de impeachment do presidente Jair Bolsonaro foi protocolado, ontem, na Câmara dos Deputados, por diversos partidos políticos, parlamentares e entidades da sociedade civil. O ‘superpedido’ tem potencial para incriminar o mandatário por crimes de responsabilidade no enfrentamento à pandemia do novo coronavírus, diante da gravidade de denúncias formuladas, mas já enfrenta reações da presidência da Casa, a quem cabe dar tramitação e andamento a um processo que possa levar ao afastamento de Bolsonaro, o que indica que há um duro caminho a ser percorrido, envolvendo a pressão da sociedade sobre o Parlamento. Arthur Lira (PP-AL), dirigente da Câmara, chegou a ironizar o ‘superpedido’, insinuando que não há pressa nem haverá suposto “atropelo” no seu ritual.
Com 46 signatários, o ‘superpedido’ consolida argumentos nos outros 122 pedidos de impeachment que já foram apresentados à Câmara e atribui 23 crimes de responsabilidade ao presidente da República. Entre esses argumentos figura o mais recente, que aponta prevaricação do chefe de Governo no caso da suspeita de corrupção no contrato de compra da vacina indiana Covaxin. A petição acrescenta elementos relativos à condução desastrosa do governo federal diante da pandemia, causadora de mais de 500 mil mortes até o momento, bem como menciona declarações públicas geradoras de instabilidade institucional. Logo na abertura, Bolsonaro é inquinado por crimes contra a existência da União, decorrentes das “repetidas e desatinadas manifestações de hostilidade promovidas publicamente em relação a país estrangeiro, agravadas pelo delicado contexto da pandemia em que a colaboração internacional se impõe como requisito essencial à obtenção de ajuda científica, aquisição de insumos e acesso à vacinação em massa”.
A petição alerta que “restará, ainda, comprovado por meio das circunstâncias extraídas da instrução do processo que o atual presidente da República atuou em oposição a obrigações relacionadas à integridade da União, especialmente em decorrência da alteração radical da política externa, comprometendo seriamente a soberania nacional”. Ressalta que outro aspecto grave, identificado no comportamento do presidente da República, “decorre da violação da imunidade de representantes diplomáticos acreditados no Brasil, para dar azo a delírios e paranoias de cunho ideológico, utilizadas irresponsavelmente pelo presidente da República para insuflar a sua base política fanatizada”. Ademais, “a adoção de diretrizes voluntaristas e erráticas por parte do presidente da República e do governo federal, sob temerária condução, resultam na violação de tratados e compromissos internacionais assumidos pelo país”.
O presidente é acusado de crimes contra o livre exercício dos Poderes Legislativo e Judiciário e dos poderes constitucionais do Estado, em virtude “de manifestações de índole antidemocrática e afrontosas à Constituição, em que foram defendidas gravíssimas transgressões institucionais, tais como fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, além da reedição do Ato Institucional número 5, instrumento de exceção emblemático da ditadura militar instaurada em 1964”. Consta no documento que, “ao estimular pessoalmente tais espúrias agitações, que celebraram símbolos históricos de supressão de liberdades e garantias da cidadania, o chefe do Poder Executivo fomentou a obstaculização da representação parlamentar democrática, ameaçando a permanência no cargo do então presidente da Câmara dos Deputados”. Além disso, o mandatário “praticou oposição ao livre exercício do Poder Judiciário, bem como pretendeu usar de ameaça para constranger magistrados do Supremo Tribunal Federal no livre e regular exercício de sua jurisdição”.
É destacada a posição de desafio aberto à autonomia de Estados-membros da Federação, do Distrito Federal e dos municípios em suas respectivas competências. “Por outro lado, ressai a observação de uma temerária concretização, por parte do Chefe de Governo, do intento criminoso de degradar a ordem social, desarticulando instituições e estruturas voltadas à sua promoção de acordo com os rumos traçados pelo texto constitucional. Haverá, ainda, de modo compreensivo e totalizante, a verificação objetiva da ocorrência de crimes de responsabilidade decorrentes da exibição de fatos que evidenciarão a patente violação de direitos e garantias individuais e sociais assegurados na Constituição da República, notadamente nas searas econômica, social, cultural e ambiental, além da usual e abjet prática de agressões a profissionais de imprensa no livre exercício de suas atividades”. Não bastassem tais transgressões, o presidente é inquinado por enveredar perigosamente para o flerte com a anarquia militar, incitando subordinados integrantes das Forças Armadas a desobediências dos regulamentos castrenses.
O ‘superpedido’ é, sem dúvida, bastante fundamentado e eivado de assertivas constitucionais e legais que, por causa da gravidade de que se revestem, mereceriam exame acurado e urgente da parte dos representantes do povo no Congresso Nacional. Fica assinalado, com clareza solar, que o denunciado “jamais esteve à altura da responsabilidade do cargo que ocupa”, adotando, mesmo, uma conduta deletéria. O presidente “praticou, ainda, grave violação ao princípio republicano e ao mandamento constitucional de impessoalidade no exercício da gestão” ao usar poderes inerentes ao cargo para obtenção espúria de interesses de natureza pessoal (no caso da vacina Covaxin). Também é inegável a repercussão internacional do ‘superpedido’ de impeachment do presidente da República, já conhecido pela postura negacionista adotada na pandemia. O problema continua sendo a resistência da Câmara em aceitar o pedido, uma postura que foi marca da gestão de Rodrigo Maia e agora é encampada por Arthur Lira, eleito com o apoio de Bolsonaro. Só a pressão da sociedade pode pôr um fim ao impasse político que o Brasil vive em meio à aflitiva crise sanitária que assola o mundo.