Nonato Guedes
Em termos objetivos, não há como situar a prisão do ex-deputado Roberto Jefferson como atentado à liberdade de expressão no Brasil. O militante bolsonarista e presidente nacional do PTB vinha extrapolando todos os limites da chamada convivência democracia. Não expendia meras opiniões ou juízos de valor sobre a atuação do Poder Judiciário e ministros da Corte – ele avançou por ofensas pessoais, xingamentos e ataques à própria reputação de autoridades, no intuito de desqualificá-las no conceito da autoridade e, em paralelo, desqualificar o trabalho que empreendem dentro da legalidade institucional vigente na conjuntura. Roberto Jefferson e o deputado Daniel Silveira (PSL) tentaram se sobrepor às regras, escudados numa ilusória proteção que o chefe de Governo poderia lhes outorgar. O problema é que o próprio Bolsonaro é um dos arautos da desobediência e um incentivador da impunidade.
Foi vergonhoso e patético, para citar fato mais recente e de repercussão internacional, o desfile de forças militares, blindados e mísseis diante da figura do presidente da República no dia em que o Congresso Nacional se preparava para discutir, votar e liquidar a polêmica do Voto Impresso, que vinha sendo agitada por Bolsonaro. A ninguém passou desapercebido que se tratou de uma orquestração para intimidar o Parlamento, por quem Bolsonaro nutre desprezo, embora tenha construído grande parte da sua carreira política lá. Uma carreira política, diga-se de passagem, insignificante, sem brilho, vazia de conteúdo, coerente com o perfil de um parlamentar que era identificado como expoente do chamado “baixo clero” e não era levado a sério, nem nas corporações militares nem no ambiente do Legislativo. Aliás, está faltando às Forças Armadas a percepção clara de que elas são usadas o tempo todo pelo capitão reformado para satisfazer a seus caprichos e ambições de poder.
O inquérito dos atos antidemocráticos foi aberto em abril de 2020 para investigar bolsonaristas envolvidos com as manifestações que preconizavam o fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional, além da volta da ditadura militar. O pedido de abertura da investigação foi feito pela Procuradoria Geral da República um dia depois do presidente participar de uma manifestação em frente ao QG do Exército em Brasília. Em oito meses de apuração, a partir de buscas e quebra de sigilos bancário e telemático, a PF coletou informações sobre influentes nomes do bolsonarismo, como o ex-secretário de Comunicação Fabio Wajngarten e o blogueiro Allan dos Santos. A PF defendeu o aprofundamento das investigações em dezembro, enquanto a PGR, por sua vez, levou cinco meses para se pronunciar e seguiu linha contrária à da polícia. O órgão pediu ao Supremo o arquivamento do caso perante o tribunal.
Que há uma guerra declarada entre o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal, isto é fora de dúvidas, mas a impressão que se tem na opinião pública é de que o conflito tem sido alimentado permanentemente devido a ambições expansionistas de mando cultivadas por Jair Bolsonaro e que não se coadunam com os princípios democráticos vigentes. Tem sido difundida, com inteira anuência de Bolsonaro, a narrativa de que a Corte Suprema pratica dois pesos e duas medidas, já que enquanto pune militantes bolsonaristas geralmente envolvidos em fake news ou ataques às instituições, emite sentenças que favoreceram a soltura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e até mesmo a reabilitação política, com recuperação dos direitos de elegibilidade, o que lhe permite concorrer nas eleições presidenciais do próximo ano.
Não é o caso de afiançar que todas as decisões e manifestações emanadas do Poder Judiciário, sobretudo do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, outro alvo da ira do presidente Jair Bolsonaro, sejam inquestionáveis e carreguem o timbre da perfeição ou da prática da Justiça que se cobra na conjuntura atual. Há equívocos em decisões tomadas no calor das discussões feitas no âmbito daquelas instituições e em meio às dificuldades adicionais geradas pela crise sanitária, com a pandemia do novo coronavírus no país. No essencial, porém, não parece haver mais excessos ou abusos por parte do Judiciário do que acertos e equidade em deliberações assentadas. O mesmo não se pode dizer em relação ao governo e ao presidente Jair Bolsonaro, que diariamente desrespeitam leis em vigor no arcabouço institucional brasileiro, a partir do descumprimento, pelo mandatário, do uso de máscaras, tal como recomendado por especialistas em Saúde de todo o mundo.
Jair Bolsonaro nunca escondeu de ninguém suas tentações autoritárias, refletidas na obsessão permanente por adquirir poderes ditatoriais, acima das normas democráticas estatuídas. Tomou-se de desespero com decisões que conferiram autonomia a Estados e municípios em questões pontuais, na adoção de medidas para enfrentamento e combate à covid-19. Vale lembrar que essa autonomia para Estados e municípios não excluiu limites de atuação do Poder Executivo Federal, que tem sido investigado em CPI no Senado por outra razão – por irregularidades verificadas, por exemplo, no processo de negociação e compra de vacinas para imunizar a população contra a doença. Bolsonaro ressuscitou o Centrão na esperança de “dominar tudo” a partir do Congresso, mas o Centrão falhou com ele, melancolicamente, na questão do Voto Impresso.
Em suma: o presidente não está tão manietado, como insinua. Mas também não pode imaginar que o céu é o limite para quem está na presidência da República. O que os bolsonaristas têm que fazer com urgência é se enquadrar no jogo democrático brasileiro. Se tiverem que ser expelidos do poder, o serão pelas urnas – não pelos tanques, como consta nos delírios de Bolsonaro, que se comporta como se o Brasil fosse uma república de bananas. Um péssimo exemplo de civilidade política para o país.