Nonato Guedes
Às vésperas do transcurso de cinco anos do impeachment que a afastou do poder, a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) analisou, em entrevistas, os desdobramentos que se desenrolaram desde o dia 31 de agosto de 2016 e disse que o “golpe neoliberal” aplicado contra ela ainda não acabou e que as constantes ameaças do presidente Jair Bolsonaro ainda são ecos mais profundos da decisão de tirá-la do cargo. “O que estamos vivendo são as etapas do possível endurecimento do regime político no Brasil, o governo flertando com a possibilidade de um golpe dentro do golpe”, esclareceu a ex-mandatária, falando à revista da Fundação Perseu Abramo, ligada ao Partido dos Trabalhadores. Dilma é taxativa ao qualificar Bolsonaro como “neofascista”.
De sua casa em Porto Alegre, onde permanece desde o início da pandemia – saiu apenas duas vezes para uma viagem a São Paulo e outra ao México, segundo relatos – Dilma permanece atenta e acompanha com interesse os desdobramentos da crise política que o país atravessa. Ela diz que o quadro é de deterioração geral: econômica, social e institucional. Já na entrevista à “Focus Brasil”, a ex-presidente especula que a derrota de Bolsonaro nas eleições de 2022 será o primeiro passo para a reconstrução do país, mas diz que não será fácil o que o Brasil terá pela frente. “Vai haver muita dificuldade. Na área ambiental, por exemplo, alguns efeitos da política de devastação promovida podem ser permanentes. O que houve de deterioração, por exemplo, quanto às reservas indígenas, é preocupante. Eu estou preocupada”.
Num dos depoimentos de reconstituição do episódio dramático da sua destituição da presidência da República quando empalmava o segundo mandato, Dilma traçou uma espécie de linha do tempo entre o dia em que o Senado aprovou sua destituição, mas negou a perda de seus direitos políticos, até a eleição de Bolsonaro. Palavras dela: “O ato seguinte ao golpe do impeachment foi a prisão do Lula (em abril de 2018). Ali, o que se queria era inviabilizar a possibilidade dele vir a ser candidato. E, portanto, estaria garantido o processo de reprodução do próprio golpe. Ora, se o Lula é eleito, o golpe seria interrompido. Mas não bastou prendê-lo. Afinal, ele não perdeu a popularidade que desfrutava. Ainda era competitivo. E não perdeu a confiança do povo. Daí, então, passa-se a um novo ato do golpe: a interdição de Lula do processo eleitoral. Ele é condenado, preso e, finalmente, tiraram-no das eleições de 2018. Não pode falar e nem fazer campanha. O golpe foi se aprofundando”. Dilma foi a primeira mulher eleita à presidência da República do Brasil em 2010 e foi ungida por Lula como sua sucessora quando pilotava, no governo dele, o Programa de Aceleração do Crescimento-PAC, sendo massificada com o apelido de “Mãe do PAC”.
“É preciso entender o jogo. O golpe ocorreu em 31 de agosto de 2016. O que estamos vivendo agora é a possibilidade de um novo golpe baseado nas formas derivadas da guerra híbrida. Lá atrás, houve um golpe parlamentar, judiciário e midiático. Mas, sobretudo, um golpe do setor financeiro, do capitalismo financeirizado. Um golpe neoliberal. Não houve uma intervenção clássica militar, mas uma manipulação das regras legais. Apesar de aparentemente eles respeitarem os procedimentos, desrespeitaram as leis, criando crimes onde não existiam. Ali aconteceu uma ruptura violenta contra o status quo da democracia, porque ensejou todas as medidas que provocam a volta da pobreza no Brasil e a volta do desemprego. Ali, permitiu-se tomar todas as medidas que comprometeram a soberania nacional, seja a venda de estatais ou o esquartejamento da Petrobras, ou aquele absurdo da Eletrobras, que é um escândalo. Fizeram uma feira da Eletrobras, como se fosse passível de colocar numa quermesse do interior”, depõe Dilma Rousseff.
O pretexto para o afastamento de Dilma do Palácio do Planalto foi a prática de “pedaladas fiscais”, que teriam sido detectadas em auditorias rigorosas do Tribunal de Contas da União. Ela reage atacando a atual política econômica brasileira, conduzida pelo ministro Paulo Guedes, que, na sua opinião, comete crimes contra o povo e tramoias fiscais, como a manipulação do pagamento de precatórios que ele está propondo. “É muito grave, é o Estado dando calote”, fulmina. Ao insistir na alegação de que a sua saída foi parte de um processo para desestabilizar as instituições, Dilma explica: “As instituições foram sendo enquadradas uma a uma, e isso também aconteceu com o Judiciário. Quando eu disse, há cinco anos, que o golpe não ficaria ali, é porque sabia que haveria um avanço rápido sobre todas as instituições. “O quadro é de deterioração geral: econômica, social e institucional”, ressalta.
Em sua narrativa, Dilma conclui que, como em 1964, “o golpe se recusa a ser chamado de golpe, desde o primeiro momento”. Lembrou, inclusive, que durante o seu processo de impeachment, deputados e senadores de partidos como PP, PSDB, DEM, entraram no Supremo Tribunal Federal pedindo que ela fosse interpelada porque chamava o golpe de golpe. Queixa-se que a grande imprensa brasileira jamais tratou o episódio de 2016 como golpe e jamais fez autocrítica nesse sentido. “E nunca houve uma revisão judicial sobre minha situação. Essa autocrítica também não vão fazer”, proclama. Mais: “O golpe não foi brando. Não foi nada brando. E vem em etapas. O golpe de 2016 é o ato zero do processo, mas o processo continua. É o pecado original dessa crise que o país atravessa”. Ainda sobre Bolsonaro, uma constatação mordaz de Dilma no fecho das declarações: “Ele não tem o chip da moderação. O conflito é intrínseco a ele. Ele não faz gestão, não tem política e nem gestão. É um vazio”.