Nonato Guedes
Demorou, mas a discussão do impeachment do presidente da República, Jair Bolsonaro, finalmente, entrou no ‘radar’ de partidos políticos de centro e da direita liberal, que se assustaram com as manifestações golpistas patrocinadas ontem pelo mandatário em Brasília e São Paulo e que se espalharam por diferentes pontos do território nacional. Foi o pronunciamento de Bolsonaro na manifestação realizada na Avenida Paulista que fez com que vários políticos, inclusive do PSDB e do PSD, passassem a se movimentar para alavancar o processo de impeachment. Figuras como Roberto Freire (Cidadania), Gleisi Hoffmann (PT), Juliano Medeiros (PSOL) e Carlos Lupi (PDT) tentam atrair o MDB e o DEM para a cruzada em defesa da democracia que, nas condições atuais de temperatura e pressão, implica em frear a escalada autoritária de Bolsonaro.
Sozinhos, os partidos de esquerda e centro-esquerda não têm capilaridade para acelerar um processo de impeachment – e a compreensão de que é preciso ampliar o raio de ação é a novidade que emergiu no chamado “dia seguinte” ao espetáculo que tomou conta do País, ainda bem que sem o registro de incidentes mais graves ou de convulsões da ordem pública. No dizer do dirigente pedetista, Carlos Lupi, Bolsonaro passou de todos os limites. Exemplificou que quando ele falava no “cercadinho” palaciano em Brasília por 10, 15 minutos, para a sua rede social, a oposição rebatia, entrava na Justiça. Mas, agora, é diferente. Ele falou para uma multidão e em tom de confrontação aberta, chamando para a briga um Poder independente, embora blasonasse com a mentira de que ele é quem cumpre a Lei no País. O alvo principal, em tese, foi o ministro Alexandre de Moraes, que será o presidente do TSE em 2022, quando Bolsonaro pleiteará a reeleição e tentará “melar” o pleito. Mas agredida e insultada, mesmo, foi a democracia.
Até então, partidos políticos e líderes de oposição, até mesmo os mais radicais como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, vinham se limitando a criticar Bolsonaro, de preferência utilizando redes sociais. Ficaram como que escondidos do grande público, a pretexto de não gerar aglomerações nem de oferecer pretextos para a instabilidade institucional brasileira. No fundo, esses líderes e partidos estavam comprometidos com uma espécie de “zona de conforto” em que não correriam riscos maiores e ainda poderiam tirar proveito das reações explosivas ou incontroláveis dos que não apoiam o presidente e o governo e nem suportam, mais, a situação de descalabro que o Brasil vive. Essa omissão tem custado caro e, em certa medida, encorajou Bolsonaro a protagonizar “demonstrações de força” baseadas no terrorismo psicológico. É forçoso reconhecer, mas milhares de pessoas que foram às ruas, ontem, não tinham noção clara das razões pelas quais estavam lá. Alarmaram-se diante de inimigos ocultos, invisíveis, agitados como espantalhos pela retórica fascista de Bolsonaro e sua “entourage”.
O resultado é que novos crimes de responsabilidade foram cometidos, nas palavras ofensivas do presidente da República, no tom intimidatório a que ele recorreu e na ameaça de descumprir decisões judiciais emanadas de ministros do Supremo Tribunal Federal. Se isto não for um convite à desobediência civil, o que mais poderá ser? Houve uma incitação clara à população para desrespeitar outros Poderes constituídos, na avaliação de juristas consultados pelo portal de notícias UOL sobre o significado da fala presidencial. Carlos Ayres Britto, que foi ministro do STF entre 2003 e 2012, salienta que todos os pronunciamentos de Bolsonaro e suas condutas caracterizam flagrantes crimes de responsabilidade. E explica: “Os crimes do artigo 85 da Constituição se tipificam por um modo de governador que tem sido de costas para a Constituição. São crimes que pressupõem para o seu cometimento um estilo de governo de inadaptação à ordem constitucional”.
– O presidente da República mais e mais se mostra no seu governo incompatível com a ordem constitucional. Uma ordem intrinsecamente virtuosa faz da democracia o princípio dos princípios jurídicos. Princípio continente de que tudo o mais é conteúdo, inclusive a República, a Federação e a livre iniciativa – detalhou Ayres de Brito. O jurista Walter Maierovitch concorda com a avaliação. “Eu acho que foi um crime de responsabilidade porque atenta contra os Poderes”, sublinha, lamentando que todo pedido de impeachment, na atualidade, esbarre na gaveta do presidente da Câmara, Arthur Lira. Mais de 130 pedidos de impeachment já foram protocolados na Casa desde 2019, ainda na gestão de Rodrigo Maia, que hoje está convertido à causa do afastamento de Bolsonaro. Eleito presidente da Câmara em fevereiro, Arthur Lira (PP-AL) já declarou mais de uma vez que não pretende dar seguimento a um processo contra Bolsonaro.
No entanto, Maierovitch alerta que o próprio deputado Arthur Lira está sujeito a um processo de impeachment caso a maioria dos deputados entenda que ele propositalmente não dá seguimento aos pedidos que são formulados. “Ele pode ser alvo de um processo de impeachment também por crime de responsabilidade. Neste caso, seria por acobertar outro crime de responsabilidade”, diz o jurista. O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) declarou ter ingressado com notícia-crime contra Bolsonaro no STF. O parlamentar pede que o presidente seja investigado por atentado contra a ordem constitucional, eventuais financiamentos dos atos de ontem e utilização indevida da máquina pública em favor desses atos. De concreto, o “espetáculo” de ontem foi pedagógico, para “acordar” a consciência dos que ainda insistem em lavar as mãos diante da escalada autoritarista em marcha no país.