Nonato Guedes
O governador da Paraíba, João Azevêdo (Cidadania), propôs que haja uma “trégua” por parte do presidente da República, Jair Bolsonaro, nos ataques que tem formulado, sobretudo ao Supremo Tribunal Federal e ao Tribunal Superior Eleitoral, como condição para que o país “volte minimamente à normalidade institucional”. Em declarações, ontem, o gestor paraibano defendeu que haja apuração da denúncia de crime de responsabilidade supostamente cometido pelo presidente da República e admitiu que caso se confirmem as graves acusações seja examinada a hipótese do impeachment, que está na Constituição. O presidente nacional do Cidadania, Roberto Freire, avaliou como inevitável o impeachment diante de um rosário de casos que incriminariam Bolsonaro.
Na verdade, ainda está havendo, em nível nacional, por assim dizer, a “decantação” dos reflexos causados pela retórica furiosa, claramente beligerante, assumida por Bolsonaro no calor das manifestações promovidas em Brasília e São Paulo a pretexto de celebrar o Sete de Setembro, Dia da Independência do Brasil. O tratamento dispensado por Bolsonaro a ministros como Alexandre de Moraes, tratando-o como “canalha”, e Luís Roberto Barroso, chamado de “idiota”, chocou segmentos da opinião pública, mas o mais chocante foi a afirmativa do mandatário de que a partir de agora desobedeceria ordens emanadas da Suprema Corte, num caso flagrante de desrespeito à Constituição que jurou cumprir. Bolsonaro, como de praxe, recuou no dia seguinte ao pronunciamento agressivo, divulgando uma “Declaração” que foi escrita em parceria com o ex-presidente e constitucionalista Michel Temer (MDB), chamado a Brasília às pressas para “aconselhar” o capitão.
O governador paraibano poderia ter acrescentado que a “trégua” sugerida deveria se estender, também, aos governadores de Estados, impiedosa e sistematicamente alvejados por Bolsonaro com diatribes, proferidas até em reuniões ministeriais, diante de divergências sobre limites de autoridade na adoção de medidas para o enfrentamento ao coronavírus no país. Até hoje, o presidente da República foi incapaz de se revelar um interlocutor à altura para mediar um debate nacional de alto nível sobre questões urgentes que afetam a economia e a saúde dos brasileiros. Bolsonaro adota um estilo “ciclotímico”, de avanço e recuo nas opiniões sobre a conjuntura, o que confunde não apenas os opositores mas os próprios apoiadores, diante da ausência de coerência ou linearidade nos pontos que abraça. O estilo “ciclotímico” reflete a personalidade instável do presidente, combinada com a vocação ditatorial que lhe é inerente. Bolsonaro age por impulso, apostando no “imponderável”. Nesta última investida, o “imponderável” acarretou sérios prejuízos econômicos, com bloqueio de rodovias por caminhoneiros que apoiavam o presidente e sinais de desabastecimento por todo o país, além da alta desenfreada dos preços.
A definição de João Azevêdo é correta sobre o momento excepcionalmente crítico e preocupante que o Brasil atravessa: “Estamos ainda em meio a uma pandemia, uma crise econômica violenta e o país voltando ao mapa da fome…as pessoas precisando de emprego e comida, e esse clima que o Brasil viveu pelo menos até o dia 8 de setembro não interessa a ninguém. Nosso interesse é de trazer esperança ao povo”. Esta é a missão que compete aos homens públicos que exercem postos influentes na hierarquia de poder, em diferentes instâncias da sociedade, em paralelo com a responsabilidade que lhes é atribuída de viabilizar soluções que estão congeladas há bastante tempo, inclusive por causa da tensão permanente que é alimentada. Gestões e tentativas de concertação de um diálogo mínimo não faltaram. Os dirigentes de Poderes em Brasília intentaram uma reunião franca com Bolsonaro – ele recuou. Depois, os governadores mobilizaram-se para um encontro ampliado em cima de pautas relevantes – o Planalto nem tomou conhecimento. E, no entanto, sem canais de entendimento, não se vai a lugar nenhum. Pior: vai-se ao caos.
É difícil garantir que a desejada distensão institucional venha a avançar proativamente no país, em meio a tanta radicalização e ao cipoal de interesses de grupos sociais que querem tirar proveito da crise por mero oportunismo ou por intenções anarquistas que não consultam os interesses nacionais. O recuo de Bolsonaro nos ataques ao Judiciário não tem o condão mágico de mudar o comportamento de ministros do Supremo em relação a atos do governo ou de aliados considerados golpistas, antidemocráticos ou ilegais. Um integrante da Corte revelou ao jornalista Valdo Cruz, do G1, que o recuo anunciado por Bolsonaro mostra, inclusive, que o tribunal está cumprindo seu papel de atuar de forma independente para colocar limites no governo quando ele baixa medidas ilegais e inconstitucionais. Ninguém tem a ilusão de que Bolsonaro vá cessar os ataques. Mas agora ele sentiu que, se pode muito, não pode tudo.
A “trégua” é necessária para devolver o mínimo de normalidade institucional a que aludiu o governador da Paraíba, João Azevêdo. Mas, mais importante do que a “trégua”, é a conversão do presidente Jair Bolsonaro ao princípio de respeito ao Estado de Direito Democrático. Que as suas renovadas juras legalistas não tenham passado de palavras ao vento, como inúmeras outras que ele disse e que foram jogadas ao léu. A sociedade quer ver um presidente da República enquadrado no limite das “quatro linhas da Constituição” a que ele se referiu. Os tribunais terão que fazer concessões – e já estão fazendo, inclusive, em relação a discípulos de Bolsonaro. Mas sem o enquadramento de Bolsonaro à legalidade de nada valerá qualquer articulação para viabilizar a normalidade democrática. Só lembrando aos apostadores: o quanto pior é pior mesmo. Não há meio-termo.