Nonato Guedes
A Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid, instalada no Senado e que se encaminha para a reta final, sob relatoria de Renan Calheiros (MDB-AL) e presidência de Omar Aziz (PSD-AM), cogita produzir um fato de repercussão na vida política-institucional do país ao cabo dos trabalhos. Renan disse que vai propor, no relatório conclusivo da CPI, mudanças na lei do impeachment para forçar que a Câmara dos Deputados analise pedidos de impeachment contra o presidente da República. A proposta é estabelecer um tempo mínimo para o presidente da Casa (atualmente o deputado Arthur Lira, do PP-AL) avaliar denúncias oriundas da CPI. Caso o prazo não seja cumprido, caberia ao plenário, onde os demais 512 deputados votam, decidir se aceita iniciar um processo.
Se o movimento prosperar e tiver respaldo constitucional estará dado um rude golpe na postura comodista ou omissa que pelo menos dois presidentes da Câmara – Rodrigo Maia(sem partido), o anterior, e Arthur Lira, no exercício do cargo, têm demonstrado. Rodrigo foi absolutamente indiferente a pouco mais de uma centena de pedidos de impeachment de Bolsonaro por crimes de responsabilidade cometidos à frente da presidência da República, alegando que não havia condições de temperatura e pressão, dentro da conjuntura, para viabilizar o afastamento do mandatário. Uma vez devolvido à condição de simples deputado, Maia passou a defender com veemência a necessidade do impeachment. Por sua vez, Arthur Lira, que foi eleito com o apoio do Planalto, senta em cima dos pedidos de impeachment e conduz a Câmara no rumo da aprovação de matérias que interessam ao governo.
A possibilidade de que o plenário decida sobre a abertura de processo de impeachment, ao invés de ser uma decisão unilateral do presidente da Câmara, pode mudar a correlação de forças que até aqui tem se verificado em relação à situação de Bolsonaro e constituir-se numa grande contribuição a ser legada pela CPI da Covid. Conforme o jornal “O Estado de S. Paulo”, a alteração na legislação que trata do impeachment proposta por Renan tem apoio entre o grupo majoritário da CPI, mas depende de aprovação no Congresso Nacional. Renan, que parece estar sendo bem assessorado juridicamente, afirmou: “Esta CPI é uma oportunidade única para que a gente possa fazer uma revisão na legislação como um todo e até mesmo na lei do impeachment, que é de 1950. Muitos artigos já foram revogados e, portanto, ela precisa ser atualizada na linha de estender a garantia jurídica e deixar absolutamente clara a sua tramitação”.
Até ontem, havia 131 pedidos de impeachment na mesa do presidente da Câmara, Arthur Lira, mas o início do processo depende exclusivamente dele. Não existe condição ou prazo determinado para que o dirigente daquela Casa dê andamento a processos de impedimento. Aliado de Bolsonaro, Lira tem dito a interlocutores que não há clima para abertura de um processo nem votos suficientes na Câmara para aprová-lo. Hoje, as siglas de oposição congregam 132 deputados, e mesmo que haja uma adesão de todas as legendas consideradas independentes e não ocorra dissidência nas bancadas, cenário considerado improvável, o número não chegaria aos 342 votos necessários para que a cassação do mandato seja aprovada. Em todo caso, a proposta de mudar a lei de impeachment foi incluída por Renan após ele consultar integrantes do grupo Prerrogativas, que reúne advogados, professores e juristas. A sugestão foi alterar a legislação para retirar o “poder absoluto” do presidente da Câmara, estabelecendo prazos para que ele se manifeste sobre denúncias contra o presidente e, posteriormente, se mandar arquivar, apresente ao plenário, que poderia decidir pela continuidade.
A aprovação do relatório final da CPI está prevista, em princípio, para os dias 29 ou 30, e a expectativa é de que após a aprovação o documento seja encaminhado à Procuradoria-Geral da República e até a tribunais e outros organismos internacionais, enquadrando Bolsonaro em uma série de crimes cometidos no enfrentamento à pandemia de Covid-19. A proposta para obrigar a Câmara a analisar um pedido de impeachment de Bolsonaro com as conclusões da investigação tem apoio no grupo majoritário da CPI, formado por senadores de oposição ou independentes. Otto Alencar, do PSD-BA, pontuou: “Acho que é perfeitamente viável fazer isso, depois de um trabalho exaustivo de investigação como o que tem sido efetivado pela Comissão Parlamentar de Inquérito”. Acrescentou que a Câmara não poderá, como parte do Congresso, ignorar a realidade.
De concreto, há o consenso de que o Congresso Nacional – e não apenas a Câmara dos Deputados – deve uma satisfação à opinião pública pela atitude de indiferença diante dos reclamos populares que sinalizam pela concordância com abertura de processo de impeachment. O ex-deputado Ulysses Guimarães, que foi a principal figura da Constituinte, de que resultou a Constituição-Cidadã no período da nova redemocratização do país, costumava chamar a atenção para o respeito ao que denominava de “voz rouca das ruas”, qualificando-a como definidora das soluções que viessem a ser tomadas pelo Legislativo em relação a crises e conflitos nacionais. No presente momento, o Congresso tem sido surdo a essa voz rouca, o que dá a Bolsonaro a sensação de onipotência e impunidade e leva o presidente a patrocinar manifestações de rua como as do Sete de Setembro. Em última instância, é preciso que haja um tira-teima sobre o impeachment para que o Brasil siga adiante – ou com Bolsonaro sangrando até o fim, ou sem Bolsonaro no poder, depois de tanto mal que já causou à nação.