Nonato Guedes
Não há outra definição senão a de que se trata de uma “imoralidade” a articulação engendrada por líderes do “Centrão” para criar o cargo de senador vitalício, ocupado por ex-presidentes da República. A manobra e a sinecura teriam o objetivo de beneficiar, principalmente, o presidente Jair Bolsonaro, que ganharia imunidade parlamentar em caso de não reeleição ao cargo no pleito de 2022, conforme já sinalizam inúmeras pesquisas de opinião pública que atestam a impopularidade do mandatário, com a consequente ascensão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em intenções de voto. A suposta articulação foi revelada no podcast Papo de Política, do portal G1, e repercutida pela revista “CartaCapital.
Haverá dificuldades para aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), que, segundo as versões, seria apresentada em breve criando o novo cargo, diante de resistências oriundas de outros setores da própria classe política, horrorizados com a introdução de um casuísmo talhado sob medida para favorecer o ex-capitão reformado, ainda que seus efeitos colaterais possam beneficiar, também, o nóvel conselheiro palaciano, ex-presidente Michel Temer (MDB). Alega-se, entre promotores da orquestração, que a cadeira seria honorífica e sem remuneração. O “premiado” teria voz e espaço na tribuna do Senado, mas sem poder de voto. Tudo, aparentemente, muito bonito no papel, não fosse a desconfiança de que algum custo haveria para o erário, ainda que não haja como mensurar exatamente que tipo de ônus adiviria.
A criação do cargo de senador vitalício não é exatamente nova e já surgiu no debate parlamentar em outras ocasiões, como em 2002 e em 2015 – nos dois casos, o projeto foi rejeitado em plenário, quer pelo absurdo que constituía, quer pela inconstitucionalidade de que se revestia. Na verdade, a atual proposta, que já levou deputados a consultarem ministros do Supremo Tribunal sobre a viabilidade concreta, imita a ideia do ex-ditador do Chile, Augusto Pinochet. Ele criou o cargo para si mesmo em uma tentativa de se blindar pelos crimes cometidos durante a ditadura chilena, inclusive crimes contra a humanidade. Pinochet ascendeu à presidência do Chile na esteira do golpe que derrubou o governo democrático de Salvador Allende e custou a sua morte. Implementou uma das mais sanguinárias e repressivas ditaduras do chamado Cone Sul.
Em junho de 2015, o Plenário da Câmara dos Deputados em Brasília rejeitou proposta similar, embutida na PEC 182/07, instituindo a figura do “senador vitalício”. A emenda foi apresentada, então, pelo deputado Leonardo Picciani (PMDB-RJ), filho do ex-deputado estadual Jorge Picciani, que viria a ser preso em esquemas de corrupção com dinheiro. O resultado foi rejeição de 404 votos, com nenhum voto favorável. O cargo de senador vitalício seria ocupado pelos ex-presidentes da República, que não poderiam participar de novas eleições e nem teriam direito a voto no Senado. A emenda também permitia o voto em trãnsito para qualquer cargo em disputa. Atualmente, isso é permitido somente para o voto em presidente da República, como prevê resolução fixada pelo Tribunal Superior Eleitoral.
O presidente nacional do PSD, Gilberto Kassab, em entrevista à mídia sulista, revelou que, se vier a ser colocada em discussão a proposta do senador vitalício, vai defender que o casuísmo não tenha validade agora, somente para o futuro. O Brasil já teve alguns experimentos políticos considerados esdrúxulos ou apontados como “excrescências” do seu sistema, como a figura do senador “biônico”, que foi adotado no regime militar, bem como a figura dos governadores “biônicos”, que não eram submetidos ao crivo do voto, mas escolhidos pelos presidentes da República com indicações de cúpula do partido governista nos Estados. Nem todos os escolhidos foram desastrados. Houve exceções honrosas, mas, para falar a verdade, foram poucas. Os avanços democráticos conspirariam para que tais experimentos fossem varridos de cena no quadro institucional brasileiro. Mas como a imaginação de congressistas é sempre pródiga, retoma-se agora a ideia do “senador vitalício” para contemplar Bolsonaro, que foi uma nulidade no exercício do mandato de deputado federal em quase três décadas de atuação. É uma afronta à consciência cívica do eleitorado brasileiro e a articulação deve ser, o quanto antes, expelida das tratativas políticas que se desenrolam em Brasília.
O UOL Notícias avalia que “essa proposta de anistia a Bolsonaro sinaliza que há gente graúda disposta a ignorar os crimes dele à frente do Planalto”. E acrescenta: “Atormentado pela ameaça de indiciamento imposta pelo relatório final da CPI da Covid instalada no Senado e pelas crescentes mobilizações internacionais para que sua gestão da pandemia seja enquadrada como crime contra a humanidade pelo Tribunal Penal Internacional em Haia, o presidente teria, assim, um estímulo para desistir da reeleição. Tal movimentação, em tese, favoreceria um candidato ou candidata da chamada terceira via contra o líder das pesquisas, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva”. O doutor em relações internacionais por Oxford Vinícius Rodrigues Vieira acredita que, independente de manobras políticas, Bolsonaro vai ter que conviver com a sombra de um eventual processo por crimes contra a humanidade em Haia, na condição de cúmplice de vários atos desumanos praticados ao longo da sua trajetória.