Nonato Guedes
No dia 22 de junho completará duas décadas a “Carta ao Povo Brasileiro”, um documento muito controverso, com o objetivo de acalmar os ânimos dos mercados (banqueiros, empresários, investidores rentistas e mídia), que estavam causando abalos na economia devido ao favoritismo do então candidato do PT à Presidência da República Luiz Inácio Lula da Silva. Assinada pelo próprio Lula, a “Carta” foi considerada marcante na história da Nova República por representar a ascensão de um político e de um partido de esquerda ao posto mais importante da hierarquia de poder. Por meio dela, o petista acenou com o diálogo com os mais diversos setores produtivos da sociedade, demonstrando sua preocupação não apenas com a política de justiça social, mas também com o mercado interno e externo. Os adversários, até então, faziam terrorismo, insinuando uma fuga de capitais para o exterior na hipótese da vitória de Lula.
Foi a primeira vitória de Lula ao Planalto desde a primeira vez em que se lançou ao cargo em 1989 e disputou o segundo turno contra Fernando Collor de Mello. Há quem tente comparar a dimensão daquele documento com a repercussão do gesto de Lula admitindo, nas eleições deste ano, contar com um ex-adversário, o ex-tucano Geraldo Alckmin, que foi governador de São Paulo, como candidato a vice na sua chapa. A comparação não é consensual nos meios políticos e econômicos, mas, para além disso, persiste a impressão de que a “Carta ao Povo Brasileiro” continua atualíssima, devido ao desmonte em vigor de conquistas econômicas e sociais com que Lula se comprometeu lá atrás, muitas das quais chegando a ser implementadas na conjuntura nacional. O governo atual de Jair Bolsonaro tem sido extremamente perverso e anti-nacional. Lula defendia o que chamava de projeto nacional anternativo, baseado no estímulo à economia, geração de empregos e garantia da soberania nacional.
O país passava, então, por profunda crise econômica no final do governo Fernando Henrique Cardoso. O presidente tucano foi responsável, em seu primeiro mandato, pela estabilização da economia e pela criação do Real, moeda que possibilitou o controle da inflação e o crescimento econômico do país. No entanto, ao final do seu segundo mandato, uma nova crise econômica se aproximava e havia medo de que um novo governo, direcionado à esquerda, não conseguisse lidar com a questão econômica a contento. O candidato petista lança, aí, a sua carta propondo a necessidade de discussão de uma agenda para lidar com a crise iminente e defendendo que era preciso priorizar o desenvolvimento econômico sem esquecer da justiça social, bandeira que marcou a sua luta política desde o final da década de 1970, quando se projetou como importante liderança sindical na região do ABC paulista. Em 2002, Lula derrotou em segundo turno José Serra, quadro do melhor nível do PSDB, que polarizava com o PT a disputa presidencial. A luta contra a fome também entrou como prioridade na carta de intenções, por se tratar de problema gravíssimo no país.
No início da “Carta ao Povo Brasileiro”, Lula diagnosticou: “O Brasil quer mudar. Mudar para crescer, incluir, pacificar. Mudar para conquistar o desenvolvimento econômico que hoje não temos e a justiça social que tanto almejamos. Há em nosso país uma poderosa vontade popular de encerrar o atual ciclo econômico e político. Se em algum momento, ao longo dos anos 90, o atual modelo conseguiu despertar esperanças de progresso econômico e social, hoje a decepção com os seus resultados é enorme (…) O sentimento predominante em todas as classes e em todas as regiões é o de que o atual modelo esgotou=se. Por isso o país não pode insistir nesse caminho, sob pena fica de ficar numa estagnação crônica ou até mesmo de sofrer, mais cedo ou mais tarde, um colapso econômico, social e moral”. Além de tranquilizar os mercados financeiros quanto a honrar compromissos já assumidos, Lula escolheu como vice um empresário vitorioso, José de Alencar, bastante conceituado a partir de Minas Gerais, que acabou compondo a chapa do petista à reeleição em 2006.
Dizia Lula, em 2002: “O povo brasileiro quer mudar para valer. Recusa qualquer forma de continuísmo, seja ele assumido ou mascarado. Quer trilhar o caminho da redução de nossa vulnerabilidade externa pelo esforço conjugado de exportar mais e de criar um amplo mercado interno de consumo de massas. Quer abrir o caminho de combinar o incremento da atividade econômica com políticas sociais consistentes e criativas. O caminho das reformas estruturais que de fato democratizem e modernizem o país, tornando-o mais justo, eficiente e, ao mesmo tempo, mais competitivo no mercado internacional; o caminho da reforma tributária que desonera a produção, da reforma agrária, que assegure a paz no campo, da redução de nossas carências energéticas e de nosso déficit habitacional, da reforma previdenciária, da reforma trabalhista e de programas prioritários contra a fome e a insegurança pública”.
Na leitura do então candidato pelo PT, a forte preocupação do mercado financeiro era com o mau desempenho da economia e com sua fragilidade na época, gerando temores relativos à capacidade de o país administrar sua dívida e externa. “É o enorme endividamento público acumulado no governo Fernando Henrique Cardoso que preocupa os investidores. Trata-se de uma crise de confiança na situação econômica do país, cuja responsabilidade primeira é do atual governo. Não importa a quem a crise beneficia ou prejudica eleitoralmente, pois ela prejudica o Brasil. O que importa é que ela precisa ser evitada, pois causará sofrimento irreparável para a maioria da população”, pontuou o candidato Luiz Inácio Lula da Silva. Duas décadas depois, independente de reproduzir uma “Carta ao Povo Brasileiro”, Lula tem dialogado sobre efeitos persistentes da crise, agora sob a batuta de Jair Bolsonaro. E, tal como em 2002, tenta se apresentar e ganhar a confiança como contraponto a “tudo isso que está aí”, acrescido de um ponto importante: o compromisso com a defesa da democracia, que tem estado ameaçada na Era Bolsonaro