Nonato Guedes
Ter trabalhado na TV Cabo Branco, no “Paraíba Meio Dia”, com o jornalista Chico Maria, que nos deixou, ontem, aos 92 anos de idade, foi um privilégio. Escrevi, certa vez, que Chico era insubstituível, único, no dom de perguntar – e se agigantava quando a entrevista era com personalidades brilhantes. Foi, sobretudo, na TV Borborema, em Campina Grande, no programa “Confidencial”, apresentado ao vivo, que Chico criou fama no jornalismo. Saber perguntar implica em ter conhecimento dos assuntos, em se aprofundar neles, até para dispor de elementos de argumentação no que é uma espécie de embate com o entrevistado. Chico era irreverente, cáustico, perquiridor, inquieto, mas sempre respeitoso. Era o típico jornalista que só se dava por satisfeito quando a sua própria curiosidade fosse atendida, pois isto significava, para ele, que o leitor ou telespectador também estava saciado de informações que buscava para interpretar fatos ou extrair ilações de episódios marcantes.
O estilo franco, direto, objetivo, era pessoal e intransferível, o que lhe conferia uma aura de respeitabilidade indiscutível. Menciono, aqui, duas entrevistas antológicas na televisão, mediadas por ele ainda nos estertores da censura, no programa “Confidencial” que se projetava a nível nacional a partir da TV Borborema. Uma foi com Dom Hélder Câmara, o arcebispo de Olinda e Recife, exorcizado pelas elites e pela ditadura como “o bispo vermelho” porque defendia os interesses dos pobres e contestava os privilégios dos poderosos. A outra foi com Luís Carlos Prestes, o eterno dirigente do Partido Comunista. Duas personalidades distintas, teoricamente antípodas nos ideais e nas pregações, que se tornaram expressões de conjunturas difíceis, perversas, na História do Brasil. Dom Hélder era o pacifista, Prestes chegou a defender a derrubada de regime pelas armas. A convergência se dava no plano da defesa da justiça social e do combate à opressão institucionalizada.
Chico pergunta ao arcebispo: “Em que a Igreja se baseia para afirmar que Pedro foi o primeiro Papa, se consta que jamais esteve em Roma?”. Resposta – Quanto a esse problema aí, francamente não perco tempo com ele, entendeu? Acho que há coisas mais graves, mais importantes”. Chico emenda: “Se a Igreja clama contra a riqueza mal aplicada, sem aplicação no social, o que ela diz da riqueza do Vaticano?”. Dom Hélder titubeia: “Esse problema da riqueza que é o Vaticano é um problema complexo. Por exemplo, quem é que se lembra que Paulo VI acabou com a guarda nobre, e não foi fácil extinguir a guarda…A Igreja, no seu todo, bispo, padre e leigos, nós vivemos num esforço sincero de darmos um exemplo concreto de despojamento”. O jornalista avança: “Segundo a Bíblia, uma folha não cairá da árvore a não ser pela vontade de Deus. Quando aquela criança de 11 anos estava sendo estuprada, Deus estava dormindo?”. Dom Hélder: “Não. Em absoluto. Deus é vigilância eterna, indormida”. Chico: “E por que Ele permitiu o estupro da criança?”. Dom Hélder: “Deus concedeu ao homem ser o senhor das próprias ações, através do livre arbítrio. Permitiu que o homem fizesse o próprio caminho, com seus gestos, palavras, atitudes”.
Alguém pensa que Dom Hélder “amaldiçoou” Chico Maria pelas perguntas? Pelo contrário, quedou-se, genuflexo, diante da inteligência e da agilidade de raciocínio do jornalista paraibano. Também cobriu-lhe de elogios por não censurar nenhuma das declarações feitas no programa. Assim expôs Dom Hélder: “Eu venho ao seu programa trazendo minha gratidão, porque nas horas difíceis, somente aqui, em Campina Grande, na TV Borborema, me deixam falar. Falar ao vivo, no diálogo com o povo, sem censura. Minha gratidão a você, meu caro Chico Maria”. Já Luís Carlos Prestes foi perguntado, de inopino, porque se perpetuava à frente da secretaria do Partido Comunista. Eis o trecho do diálogo: Chico – Há quantos anos o Sr. está à frente da secretaria do partido? Prestes – Eu estou desde 1945, quando saí da prisão. Fui eleito em 43, quando estava ainda na prisão. Chico – E nunca deu lugar a outro? Prestes – É, sempre fui reeleito. Eleito no quarto Congresso, no quinto Congresso e no sexto congresso. Chico – E por que não deu oportunidade a outros companheiros, outros camaradas? Prestes – Isso não dependia da minha vontade. É a vontade dos comunistas”.
Chico Maria indagou a Prestes, ainda: “Como o senhor apertou a mão de Getúlio Vargas, sabendo que ele entregou sua mulher, grávida, a Hitler, para ser morta nos campos de concentração?”. Sobre as entrevistas de Chico Maria, disse bem o mestre Gonzaga Rodrigues: “Elas (as entrevistas) continuam vivas. Mais que isso: únicas, irrepetíveis, porque de um momento único no seu tempo e na sua expressão. Sempre em busca de grandes personagens, Chico Maria estava longe de supor que era e continuou sendo um deles”. A Paraíba sempre foi celeiro de grandes profissionais da imprensa, muitos dos quais incursionaram com louvor pela literatura. Chico Maria é um dos principais nomes dessa constelação e deixou lições para gerações consecutivas, aqui & alhures.