Nonato Guedes
O jornalismo paraibano ficou mais pobre, ontem, com a morte, em João Pessoa, por complicações da Covid, de João Manoel de Carvalho, conceituado analista político e referência de ética e dignidade no mister que exerceu. Foi quem me guiou, na imprensa, pela margem esquerda da política. Cometeu a temeridade de entregar-me sua prestigiosa coluna, no “Correio da Paraíba”, em 1978, para que eu o substituísse na análise e comentário dos fatos por breve período de interrupção da sua labuta. O Estado pegava fogo com a disputa ao Senado, opondo o ex-governador Ivan Bichara Sobreira ao senador Humberto Lucena. João Manoel tinha gratidão por Ivan Bichara, pelo apoio que este havia dado ao projeto de consolidação do “Correio” ante “O Norte”, na fase de opção pelo off-sett. Conduzia essa batalha em parceria com Aluízio Moura e sua obsessão era garantir a sobrevivência do jornal, que foi conseguida, em plena conjuntura de modernização dos órgãos de comunicação impressos.
A eleição ao Senado foi vencida por Humberto Lucena, que teve o reforço de duas sublegendas, ocupadas por João Bosco Braga Barreto (Cajazeiras) e Ary Ribeiro (Campina Grande). Bichara sentiu-se traído por dissidentes marizistas-agripinistas que ensaiavam aproximação com o MDB de Humberto Lucena, sinalizando corte epistemológico na realidade política local – mas o conjunto dos fatores demonstrou que o ex-governador pecou por resistir a aceitar sublegendas de peso na sua chapa e, colateralmente, foi alcançado pelo desgaste do regime militar, que estava nos seus estertores. Bichara foi “governador biônico” mas tinha espírito público e nenhum sentimento de perseguição. Pelo contrário, era um democrata por excelência. E, mesmo assumindo o governo após afastamento das lides políticas na Paraíba, firmou imagem positiva, a ponto de ser, individualmente, o mais votado ao Senado em 78, perdendo para as sublegendas que ele, de certo modo, refugara.
No livro “O Jogo da Verdade”, que “A União” lançou na minha gestão nos 30 anos do golpe militar de 1964, e que confrontou algozes e vítimas (estas em maior escala) da aventura antidemocrática que se instalou no país, João Manoel ofereceu depoimento intitulado “1964: O Ano que não terminou”. Era cético em relação à redemocratização que se anunciava, com a chegada da anistia, a volta dos exilados e o restabelecimento de eleições diretas, inicialmente para governadores, por último para presidente da República. “A redemocratização foi uma grande mentira, uma grosseira manipulação. As elites usaram a redemocratização para um novo assalto ao Poder, tal como mais tarde fariam. na campanha pelo impeachment do malogrado presidente Collor”, admoestou João Manoel. Para o respeitado analista, “as mesmas forças que derrubaram Goulart se mobilizaram para preservar os privilégios da classe dominante na chamada transição do Estado autoritário para o regime democrático”.
Em nota-adendo ao depoimento de João Manoel de Carvalho, o historiador José Octávio de Arruda Mello, um dos organizadores do livro, escreveu: “A 31 de março de 1964, João Manoel de Carvalho, antigo general da Cruzada do Colégio Pio X nos anos 50, já havia se bandeado com armas e bagagens para a esquerda, onde atuava como ativista sindical, defensor das Ligas Camponesas e integrante do PCB. Jornalista de alta categoria, figurava no “índex” da “nova ordem”, daí porque fugiu para o Ceará e, depois, Catolé do Rocha, tornando-se, mais tarde, colunista político”.
Abstraindo “acertos de contas” do passado, a verdade é que João Manoel de Carvalho exerceu forte influência na minha formação jornalística, pelos ensinamentos transmitidos, pelas oportunidades proporcionadas, pela liberdade que me conferiu, jamais censurando qualquer texto noticioso ou analítico. A deferência para com este escriba ficou refletida em outros momentos, como quando assinou nota de solidariedade como presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais em episódio de agressão que sofri, quando votou em mim para presidente da Associação Paraibana de Imprensa e quando me convidou para escrever no semanário “Contraponto”, que ele comandou em período recente da história da Paraíba, antes do apagão que ceifou o jornalismo impresso.
João Manoel de Carvalho, por assim dizer, oportunizou o meu ingresso em grande estilo no colunismo político, primeiro adotando-me como “Redator-Substituto” da sua coluna, depois efetivando-me com coluna própria. Sempre me dividi, em admiração e reconhecimento, entre João Manoel de Carvalho e Severino Ramos, este meu parceiro de inúmeras jornadas, inclusive memoráveis, na Associação Paraibana de Imprensa. João Manoel guiou-me pela margem esquerda da política ao chamar minha atenção para os ex-cassados que, na Paraíba, voltavam à cena, e pautar-me para entrevistá-los e levá-los a uma reflexão de fase tão marcante da vida brasileira. Foi assim que cheguei a Assis Lemos, José Joffilly, Antônio Augusto Arroxelas, Osmar de Aquino, Pedro Gondim, Ronaldo Cunha Lima, Vital do Rêgo, Sílvio Porto – e a personalidades que se destacaram no ativismo a posteriori, como o querido arcebispo Dom José Maria Pires. É tudo isto que me vem à lembrança, confrontado com a notícia da partida do grande Mestre. Sua contribuição ao jornalismo da Paraíba foi inestimável e fica como o grande legado para as gerações de qualquer época.