Nonato Guedes
A impressão que se tem entre analistas políticos, no Brasil e no exterior, é a de que o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já governa o país mesmo sem ter sido ainda investido formalmente no cargo pela terceira vez e sem dispor da caneta que nomeia e demite e que é símbolo de poder na tradição política nacional. Tal impressão é reforçada pela intensa agenda que Lula tem cumprido desde que foi considerado vitorioso e por gestos bem significativos que ele tem adotado, a exemplo do reatamento da relação institucional com Poderes, em antítese ao estilo autoritário e isolacionista do ainda governante Jair Bolsonaro (PL) durante praticamente todo o mandato de quatro anos. Com Lula, o Brasil volta a ser destaque em conferência internacional como a do clima e o presidente eleito já recebeu dez convites para reuniões bilaterais. Enquanto isso, Bolsonaro tomou chá de sumiço nessas horas dramáticas que antecedem o instante de ser apeado do Planalto.
Ao mesmo tempo, estadistas do porte do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, expressam interesse em dialogar com o futuro dirigente brasileiro sobre temas que envolvem a ordem mundial, como a própria defesa da Amazônia e questões econômicas e sociais que são tidas como delicadas. Lula tem conversado com dirigentes e líderes do Congresso (Senado e Câmara dos Deputados) sobre consensos em torno da manutenção do Auxílio Brasil, que virá travestido novamente de Bolsa Família, e do aumento real do valor do salário mínimo, além de insistir em políticas compensatórias que sinalizem alternativas para a tragédia da fome e do desemprego. Há quem avalie que Lula tem sido infeliz em algumas frases, já embalado pelo deslumbramento da vitória, como as que se referem ao suposto “nervosismo” do mercado financeiro com teto de gastos e demais pontos controversos. É possível, porém, que essa postura de Lula seja calculada para demonstrar firmeza ante eventuais chantagens que possam pairar sobre metas que ainda estão sendo definidas pela numerosa equipe de transição coordenada pelo vice eleito Geraldo Alckmin (PSB).
Lula tem “expertise” em processos de transição porque os vivenciou em momentos difíceis, nas suas primeiras duas vitórias à Presidência da República, depois de acirrado clima de radicalização política e de pressões de forças econômicas ativas e influentes na sociedade, mesmo com concessões que durante as campanhas ele havia feito no tom e nas atitudes concretas. Para além disso, há quem analise que Lula, no novo mandato, venha a ser uma encarnação do ex-presidente Tancredo Neves, que foi eleito pelo voto indireto mas com amplo respaldo e faleceu antes de tomar posse. Tancredo falava em nome da Aliança Democrática, uma porção de personagens que eram divergentes e se juntaram para enfrentar um inimigo comum, a ameaça da continuidade da ditadura militar, como lembra o cientista político Christian Lynch, professor da Uerj e coautor com Paulo Henrique Cassimiro do livro “O Populismo Reacionário: Ascensão e Legado do Bolsonarismo”, da editora Contracorrente, versão 2022.
Em declarações à BBC News Brasil, Lynch cravou: “O próximo governo Lula será um governo de centro. Ele só vai conseguir tocar uma política de esquerda, com a criação dos Ministérios da Mulher e dos Povos Originários, no âmbito do Poder Executivo. Ele não vai propor nada do ponto de vista de legislação, que passa pelo Congresso, em matéria de costumes. E ele também vai nomear alguém para fazer uma política que satisfaça a centro-direita”. Não vai ser um governo do PT, vai ser um governo amplo, de coalizão. Tanto que a primeira pessoa que ele mencionou num discurso foi a senadora Simone Tebet, do MDB, que foi candidata à Presidência e que apoiou sua candidatura no segundo turno. É bom por um lado para que não haja o risco de colapso do governo”. Simone Tebet tem fortes ligações com o agronegócio, “nicho” em ascensão na economia brasileira, mas é respeitada, também, pela “sensibilidade social”.
Outro sinal dado por Lula em discurso foi a referência à religião. O eleitorado evangélico se reuniu em torno da candidatura à reeleição de Jair Bolsonaro e seu peso no voto teve ampla atenção durante o processo eleitoral. Diz Lynch: “A fala de Lula começou com Deus e terminou com Deus. Eu até imagino que a gente tenha que ver o Lula pelo menos duas vezes por mês em alguma igreja ou templo evangélico. Eu acho que será necessário para começar a desmontar a guerra cultural do bolsonarismo”. Na economia, de acordo com Lynch, Lula precisará balancear as expectativas do mercado e uma política que atenda a população mais pobre. O presidente eleito terá pela frente problemas na parte fiscal e uma conjuntura internacional com muitas incertezas devido a conflitos como a Guerra na Ucrânia. “Ele vai ter que fazer um equilíbrio muito grande entre deixar a economia de mercado funcionar no limite, que se perceba funcionando de forma autônoma e, ao mesmo tempo fazer uma política para os mais necessitados. E ele passou a campanha inteira falando de picanha, de reviver os bons tempos, então ele vai ter que atender essa demanda da economia. Lula vai ter que botar comida na mesa, mas, na sua cabeça, isso não é complicado. No Lula I, o primeiro mandato, ele resolveu isso”, conclui o cientista político.,