Nonato Guedes
No íntimo, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sabia que não ia ser fácil a montagem do terceiro governo para o qual foi eleito democraticamente no acirrado pleito deste ano. Mas talvez Lula não imaginasse que a extensão do desastre bolsonarista no Brasil fosse de tamanha proporção, como está vindo a público nas descobertas da equipe de transição. O País foi submetido na Era Bolsonarista ao caos total, a um estágio de destruição como nunca se viu na sua História, como se um furacão devastador tivesse se abatido sobre o território nacional. O presidente Lula estava sendo profético ao definir que sua grande missão, na volta ao poder, seria a da “reconstrução”, depois do “tsunami” que o bolsonarismo impregnou em apenas quatro anos de passagem pelo governo federal. Daí porque o esforço será hercúleo, já que o capitão e seus aloprados não estão deixando pedra sobre pedra na estrutura da maquina de gestão do país.
Suspeitava-se que havia algo de pôdre no reino bolsonarista. Não se contava, porém, com a dimensão do estrago, do verdadeiro saque ao erário que foi implementado de forma despudorada, a um ponto dramático e a um preço muito caro para a soberania nacional e a própria integridade do serviço público, já esgarçado por práticas de corrupção e dilapidação dos recursos publicos, além da malsinada paralisação de programas de impacto social urgentes, num recibo claríssimo de que esse governo que ainda está aí blefou o tempo todo, manipulou informações, ilaqueou a boa-fé de cidadãos incautos e criou um Brasil completamente surrealista como parte da visão “paralela” que tem levado o nada a coisa nenhuma. De permeio, sobressai a fábrica de produzir mentiras em que o governo Bolsonaro se tornou pródigo desde o primeiro dia, num trabalho permanente de contra-informação, de produção de “fake news”, embrião do combustível que alimenta atos antidemocráticos e, ultimamente, atos de terrorismo, como os que foram verificados em Brasília e em outros pontos do território nacional.
O mundo assiste perplexo, mas não omisso, ao que acontece no Brasil. As manifestações de chefes de Estado de vários países são no sentido de repúdio ao descalabro bolsonarista que toma conta do Brasil e, ao mesmo tempo, de acenos de cooperação com o governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva para ajudá-lo a enfrentar os desafios gigantescos que estão se prenunciando. Já está evidente que a trégua habitualmente concedida a governantes recém-empossados poderá ser mais longa na chegada do presidente Lula ao Palácio do Planalto, diante da enormidade de problemas a serem resolvidos. Ressalte-se, aliás, que desde a proclamação do resultado da eleição presidencial em segundo turno, quando ficou configurada a derrota de Jair Bolsonaro, primeiro presidente a não ser reeleito na história desde a redemocratização recente, o atual governo praticamente deixou de governar. O presidente fechou-se em copas e quando tentou reatar seu lero-lero com os apoiadores fanáticos não tinha nada a dizer, ficando evidente a farsa do triunfo que não houve nas urnas.
Desde então, o país tem assistido, boquiaberto, ao mais melancólico ocaso de um governo de que se tem notícia na crônica política-administrativa brasileira. O clima de fim de festa em Brasília se misturou a reações descontroladas e intolerantes de baderna, em contestação a poderes constituídos que, a partir do Supremo Tribunal Federal, não se deixaram intimidar pelos arreganhos desesperados dos derrotados. A numerosa equipe de transição designada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva conseguiu, com a ajuda de setores não-governamentais, fazer o inventário da extensão do caos legado por Bolsonaro e seus ministros, e o diagnóstico é francamente desalentador, nas mais diferentes esferas. O que esteve em curso durante quatro anos não foi um projeto de governo – foi um projeto de desmonte de governo, com todas as consequências deletérias que isto tem provocado para a sociedade brasileira.
Com relação ao governo do presidente Lula propriamente dito há uma grande incógnita junto a segmentos da sociedade, mesmo daqueles que, maciçamente ou incondicionalmente, aderiram ao projeto eleitoral do ex-mandatário, do Partido dos Trabalhadores e da megacoligação a que Lula aludiu por ocasião da cerimônia de sua diplomação no Tribunal Superior Eleitoral. Há compromissos efetivos, principalmente na área social e no desenvolvimento econômico, mas são graves os desafios para recompor setores vitais como a Educação, a Cultura, a Ciência, a Tecnologia, sem falar na Saúde Pública e na Infraestrutura. Algumas escolhas de ministros do Lula III estão sendo criticadas por expoentes do próprio PT, mas isto parece o de menos se for levada em conta a grandiosidade do contencioso a ser administrado para que o Brasil recupere condições mínimas de governabilidade e de progresso e bem-estar. Antes, como agora, a tarefa maior é expurgar vícios, distorções e práticas nefastas que voltaram a penetrar as entranhas do poder público brasileiro. Um Brasil em chamas, esse é o legado que o falso “mito” está deixando no apagar das luzes, em paralelo com ameaças de perturbação da ordem que vão exigir a permanente vigilância da sociedade como um todo, não apenas do governo e dos poderes constituídos.