Nonato Guedes
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) prepara-se para celebrar, no começo da próxima semana, os cem primeiros dias do terceiro governo que está empalmando – e desde já dividem-se as opiniões de analistas políticos e de expoentes da mídia sobre o saldo que pode ser contabilizado até agora. O consenso mais ou menos dominante é o de que a gestão tem sido mais pontuada por gestos importantes do que propriamente por realizações marcantes. Há carência de obras de impacto que possam motivar a sociedade, o que é atribuído de forma simplificada ao peso da herança maldita deixada pela Era Bolsonaro, cuja característica foi o desmonte de quase tudo na estrutura do Estado, da Educação à Ciência, passando pela Saúde e Segurança Pública. Mesmo com todo esse caos, esperava-se mais do Lula III, não fosse o fato de que, na própria campanha, o candidato não acenou com grandes propostas.
Até aqui, Lula é festejado por ter evitado o pior com a sua vitória em segundo turno na campanha de 2022. O País vinha em marcha batida no rumo do retrocesso institucional, combinado com posturas negacionistas do ex-presidente da República e com a falta de empatia do governo como um todo para com os dramas e aflições da população. Jair Bolsonaro preocupou-se, prioritariamente, em governar e falar para o seu público de apoiadores fanáticos, a quem procurou manter com a fidelidade presa à custa de slogans de extremismo ideológico, da agitação de fantasias heréticas como a iminente ameaça do domínio comunista, além da manobra diversionista das motociatas que eram debitadas na conta do entretenimento, a um custo salgado para o erário e, portanto, para o próprio contribuinte bolsonarista. A Era Bolsonaro foi marcada pelo não-governo, alternada com o desgoverno – ocasiões em que o interesse era o de “passar a boiada”, na definição de um ministro acólito do capitão, ao mesmo tempo em que parcela da sociedade era mantida anestesiada. Deu no que deu – na rocambolesca história do contrabando de jóias da Arábia Saudita.
Houve, da parte do presidente Luiz Inácio Lula da Siva, a estratégia de acentuar o contraponto à nefasta Era Bolsonaro. Já na campanha eleitoral, nos debates de que participou em emissoras de televisão, o petista evidenciou seu compromisso inarredável com a defesa da Constituição e do primado legal. Em paralelo, apegou-se à pactuação intransigente pela democracia, com o fito de colaborar para o reassentamento do Estado de Direito, em articulação com poderes que ganharam força como o Supremo Tribunal Federal, espécie de fiador da estabilidade das instituições diante do corolário de golpes, contra-golpes e ameaças sistemáticas contra a democracia plena. Foi a concertação política construída por Lula junto aos Poderes constituídos que possibilitou reação fulminante aos atos terroristas geradores da depredação de sedes dos Poderes no Distrito Federal, em gestos explícitos de iconoclastia, com a destruição de símbolos e valores da memória afetiva cultural, patrimonial e histórica brasileira.
No capítulo dos gestos em que o terceiro governo Lula tem investido sobressaem as operações para desmantelar o esquema ilegal de garimpo e mineração nas terras indígenas, bem como para combater o massacre que foi imposto ao longo dos anos aos povos originários, subtraindo-lhes direitos fundamentais à própria vida, à saúde, ao bem-estar e às condições elementares de subsistência, aviltadas pela exploração desenfreada e despudorada das riquezas naturais escondidas em jazidas e tesouros localizados em regiões inóspitas do território nacional. A gestão de Lula ressignificou conceitos éticos e morais na execução de políticas públicas em várias Pastas e em diversos setores, priorizando os pobres, os quilombolas, os negros, os artistas, os profissionais de qualquer área que realmente trabalham para construir o Brasil, devolvendo a autonomia de instituições universitárias, dialogando com segmentos que nunca foram incluídos nas pautas de Bolsonaro e compartilhando a tomada de decisões com os governadores de Estados, prefeitos de Capitais e de pequenos municípios nas mais longínquas áreas deste imenso país.
Uma questão complexa, desafiadora, para o terceiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem sido a negociação com o Congresso Nacional, principalmente com a Câmara dos Deputados, para a aprovação de projetos e de matérias que são de interesse da organização administrativa do país. Vigora, como desdobramento do passado recente, o semipresidencialismo no sistema institucional, que tem a vantagem de repartir deliberações, mas por outro lado deixa o Executivo atado nas decisões mais urgentes ou imperiosas, tornando-se em muitos casos refém da velha barganha política, capitaneada na Câmara pelo indefectível Centrão, agrupamento fisiológico de triste referência. Essa negociação tem sido tão desgastante que até agora o governo Lula III enfrenta indefinição e insegurança quanto à maioria na Câmara e, de resto, no Congresso. Por isso o governo tem agido com cautela, sem açodamento, para não pôr a perder a chamada governabilidade. O grande teste do governo no Congresso Nacional ainda não aconteceu – esta é que é a realidade. Mas não deverá demorar, porque o governo terá que ser movido a pressa para atender a demandas que se acumulam nos gabinetes de Brasília.