Nonato Guedes
Uma das normas mais conhecidas e longevas do Brasil, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) completa 80 anos nesta segunda-feira mas vive o pior momento de sua história, com vários retrocessos. Uma reportagem de Ricardo Westin, da Agência Senado, relata opiniões de especialistas apontando que o novo cenário se deve não só aos fenômenos da “uberização” (o trabalho por meio de aplicativos) e da “pejotização” (em que o trabalhador atua não como pessoa física, com carteira de trabalho assinada, mas como pessoa jurídica) e ao crescente número de brasileiros que sobrevivem fazendo “bicos”, mas também à ampla reforma trabalhista levada a cabo em 2017 pelo governo de Michel Temer (MDB). O doutor em direito trabalhista Renato Bignami, um dos diretores do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho, é taxativo:
– Nos últimos 80 anos, os brasileiros nunca estiveram tão vulneráveis à exploração no trabalho quanto agora. Nas discussões da reforma trabalhista, falou-se muito que o Brasil estava desconectado do restante do mundo e que era necessário modernizar as leis do trabalho. Foi um argumento falacioso. O que se fez, na verdade, foi precarizar a situação do trabalhador para aumentar o lucro do empregador. A reforma trabalhista (Lei 13.467) estabeleceu que os acordos coletivos agora têm liberdade para prever condições de serviço que, antes, eram inaceitáveis por lei em relação a pontos como jornada de trabalho, banco de horas, intervalo de alimentação e até grau de insalubridade do ambiente. Outra mudança foi a criação da figura do trabalho intermitente. Isso significa que o trabalhador pode ficar permanentemente à disposição do patrão para serviços que só aparecerão ocasionalmente. Especialistas consideram precário esse tipo de trabalho porque o empregado não recebe salário nos períodos em que não trabalha, à espera de ser chamado.
A reforma trabalhista ainda determinou que a reparação por dano extrapatrimonial (dano moral) agora seja proporcional à remuneração do trabalhador. Quanto mais baixo for o salário, menor será a indenização a ser desembolsada pelo patrão condenado. Para estudiosos do direito trabalhista, trata-se de uma regra que fere a isonomia, por estabelecer um valor variável para a dignidade a depender da posição socioeconômica do ofendido. A contribuição sindical obrigatória foi extinta. Hoje está na mão de cada trabalhador decidir se pagará ou não o tributo. Isso afetou as finanças dos sindicatos, dificultando seu funcionamento e sua capacidade de defender os interesses das respectivas categorias profissionais. Bignami lembra que, ao lado da necessidade de modernizar a legislação, outro argumento usado para sustentar a reforma trabalhista de 2017 foi a urgência de se criarem postos de trabalho dado o contexto de crise e desemprego. Alegou-se que a CLT previa direitos demais, o que encareceria a contratação de mão de obra e desencorajaria a atuação dos empresários. “Esse foi mais um dos argumentos descaradamente falaciosos. A função da lei trabalhista não é criar postos de trabalho”, ele refuta.
Originalmente, a CLT foi criada para garantir uma série de direitos, como jornada diária máxima de oito horas, descanso semanal remunerado, férias, pagamento de hora extra, atuação em ambiente salubre, aviso prévio, licença-maternidade e licença-paternidade, décimo terceiro salário, proteção contra demissão sem justa causa e seguro-desemprego. A CLT (Decreto-Lei 5.452) foi um dos primeiros instrumentos de inclusão social do Brasil. Por essa razão, costuma ser qualificada como patrimônio do trabalhador e passaporte da cidadania. A norma foi assinada por Getúlio Vargas em primeiro de maio de 1943. Diferentemente do que informam diversos textos, o anúncio da CLT não foi feito em São Januário, campo do Vasco da Gama, na época o maior estádio de futebol do Rio de Janeiro, que costumava ser palco das festas do Dia do Trabalhador. Foi da sacada do Ministério do Trabalho, no centro da antiga capital, que o presidente anunciou a novidade, num discurso dirigido à multidão que participava das comemorações. Como o regime era o Estado Novo, a norma que instituiu a CLT não foi discutida pelo Senado nem pela Câmara, fechados na ditadura vigente. Um dos objetivos era evitar a “luta de classes” e outro era sufocar o comunismo. A CLT, em seus primórdios – informa Ricardo Westin – limitava o número de sindicatos e os subordinava ao Ministério do Trabalho, que proibia as greves e a disseminação de ideias tidas como subversivas.
A CLT surpreendeu por resistir à mudança dos tempos. No início quase exclusiva para operários da indústria, aumentou seu alcance com o passar do tempo até englobar todo tipo de trabalhador. O maior sinal de que não é datada ou ultrapassada foi emitido em 1988, quando diversas das proteções inscritas na CLT passaram a fazer parte da Constituição, ganhando o status de direitos sociais. O juiz trabalhista Luiz Antonio Colussi, presidente da Anamatra, afirma que os ataques à CLT não se limitaram à reforma trabalhista e a Lei da Terceirização. O juiz lembra que o governo Bolsonaro também tentou suprimir direitos trabalhistas, incluindo-se a liberação do trabalho aos domingos sem pagamento em dobro, o que foi vetado pelo Senado. Apesar de tudo, o senador Paulo Paim (PT-RS) se diz otimista. Ele avalia que o momento atual é mais propício do que os últimos anos para o debate, a construção coletiva de leis e a garantia de direitos sociais. “O que queremos é, ao contrário da reforma trabalhista aprovada em 2017, discutir os direitos com calma e construí-los de baixo para cima, ouvindo todos e sem imposições vindas do alto. A ideia é que o Estatuto do Trabalho seja uma nova CLT”, propõe o parlamentar.