Nonato Guedes
Ironia da história: a sorte de Jair Bolsonaro, o ex-presidente da República que ficou conhecido por atitudes de misoginia, combinadas com negacionismo à Ciência na pandemia de covid-19, foi decidida no Tribunal Superior Eleitoral por uma mulher – a ministra Cármen Lúcia, respeitada pela sua independência e combatividade. Foi com o seu voto que a Corte Eleitoral formou maioria para tornar Bolsonaro inelegível pelo período de oito anos, acusado de abuso de autoridade e de abuso dos meios de comunicação por conta da reunião promovida com embaixadores em 2022, atacando o sistema eleitoral brasileiro sem provas. “Não há democracia sem juízes”, afirmou Cármen Lúcia, reforçando o simbolismo de uma sentença indiscutivelmente antológica.
Além de Bolsonaro, dois outros ex-presidentes da República sofreram inelegibilidade no período republicano recente – Fernando Collor de Mello e Luiz Inácio Lula da Silva, sendo que este deu a volta por cima de forma espetacular, conseguindo anulação de condenações imputadas pela Justiça e reavendo seus direitos políticos, de tal forma que ao cabo de 580 dias de prisão na Polícia Federal em Curitiba obteve passaporte para disputar novamente o Planalto, sendo eleito em segundo turno, em 2022, contra Jair Bolsonaro. Os remanescentes bolsonaristas ortodoxos queixaram-se da rapidez com que o Tribunal Superior Eleitoral julgou o ex-presidente e o inabilitou para mandatos por oito anos, mas a verdade é que já vinha se acumulando um conjunto de provas contra Jair Bolsonaro, sem que ele e apoiadores radicais cessassem os atos e manifestações de hostilidade contra as instituições e, em última análise, contra o Estado de Direito Democrático que se procura preservar no Brasil. Desse ponto de vista, a decretação da inelegibilidade constituiu medida profilática inadiável.
Na observação pertinente agitada pela ministra Cármen Lúcia, “a crítica aos juízes é normal, nos últimos tempos temos sofrido com isso”, mas o que não pode “é um servidor público se valer de aparato público para fazer achaques contra ministros do Supremo”. Na sua conceituação, houve deliberada tentativa de minar a autoridade de juízes, configurando-se, destarte, uma violência contra a democracia. A ministra fez uma análise correta e imparcial dos fatos deletérios cometidos por Jair Bolsonaro, cabendo, aqui, lembrar expressão atribuída ao seu clã de que bastariam um cabo e um soldado para fechar a Suprema Corte do país. Também tornou-se fastidiosamente notória a apologia de Bolsonaro ao regime de exceção, de que derivou, por exemplo, o malsinado Ato Institucional Número Cinco, editado pela ditadura militar, que consentiu todo tipo de atrocidades e de violações às liberdades públicas. Bolsonaro sonhava com o retorno do autoritarismo em sua fase mais aguda, tendo sido contido nessa sanha pela barreira democrática erigida no meio do caminho da aventura golpista.
O que se intentou constantemente na Era Bolsonaro fo mesmo um golpe de Estado, como ficou comprovado na minuta encontrada em gabinetes de integrantes do governo decaído, numa orquestração que visava a ungir o presidente da República de poderes ditatoriais. A ministra Cármen Lúcia explicou que o TSE, nas sessões que culminaram com a decretação da inelegibilidade, tratou de uma ocorrência que atenta contra princípios constitucionais. Tratava-se, portanto, de uma questão legalista, e, como ela expressou, a competência da Justiça Eleitoral é fixada e é um dever dela se manifestar dentro desses limites. O argumento foi invocado para contestar a alegação da defesa de que o caso não deveria ser julgado pelo Tribunal Superior Eleitoral porque Bolsonaro não ganhou a eleição. Cármen não se convenceu da tese da defesa sobre suposto “alargamento do objeto” do julgamento, referência à inserção da minuta do golpe como parte do corpo de provas analisado no caso. Assegurou, então, que foi aberta ampla defesa para o ex-presidente Bolsonaro na polêmica suscitada..
Por fim, a ministra Cármen Lúcia recorda que a Jair Bolsonaro pareceu apropriado promover a reunião com embaixadores para denunciar suposta fraude iminente nas eleições brasileiras – reunião que se converteu em monólogo, pela predominância da exposição, pelo então presidente, de prováveis elementos que poderiam sugerir a possibilidade de adulteração da vontade popular nas eleições presidenciais. “Nem sempre uma coisa que parece lícita é lícita mas as transcrições comprovam a ilegalidade da reunião. Estávamos há três meses praticamente das eleições. Bolsonaro também desqualificou seguidas vezes o candidato Luiz Inácio Lula da Silva com ataques deliberados ao TSE e ao Poder Judiciário e a citação de fatos combatido pelo próprio Poder Judiciário”, avaliou Cármen Lúcia. O desfecho foi o que se viu, jogando Bolsonaro para o limbo da política nacional.