Nonato Guedes
Idealizador da Lei da Ficha Limpa, vigente desde 2012 no país, o advogado Márlon Reis ficou indignado com a minirreforma eleitoral aprovada em última etapa na Câmara dos Deputados e que faz mudanças na legislação mirando as eleições municipais de 2024. Em declarações ao site “Congresso em Foco”, Márlon advertiu que o texto aprovado anula os principais efeitos desejados pela norma, aprovada em 2010 como projeto de iniciativa popular após forte pressão e mobilização da sociedade civil sobre o Congresso Nacional. “Eu diria que foi a maior contribuição para a participação política do crime organizado que já se ousou tentar até o momento no Brasil”, bradou Márlon, acrescentando: “A mudança na lei beneficia, sobretudo, a candidatura de condenados por crimes hediondos e viola a Constituição. É um projeto natimorto, inconstitucional desde a origem. Ele confunde o período de suspensão dos direitos políticos com o período de inelegibilidade ao permitir que os dois corram ao mesmo tempo”, avaliou.
Além do projeto confundir prazos, o autor da Ficha Limpa chama a atenção para a incompatibilidade do projeto com a intenção manifestada na Constituição. “Essa lei promove valores opostos ao que a Constituição manda a Lei de Inelegibilidades cumprir. A Constituição manda editar uma Lei de Inelegibilidades visando determinados propósitos e a Câmara está retirando esses propósitos”, argumentou. O deputado federal paraibano Ruy Carneiro, do Podemos, que votou contra a minirreforma, deixou registrado seu protesto sob a alegação de que houve retrocessos em diversos pontos, inclusive, quanto à representatividade das mulheres na atividade política mediante fixação de cota em lei. O senador Efraim Filho, do União Brasil, que ontem, em João Pessoa, participou de debate na Assembleia Legislativa sobre a reforma tributária, ponderou que a minirreforma possui pontos positivos e negativos e manifestou a crença de que, sob consenso, o Senado deverá atuar no sentido de corrigir imperfeições e restabelecer eventuais conquistas que tenham sido suprimidas no projeto originário da Câmara dos Deputados.
Com a aprovação pela Câmara, os dois projetos que compõem a minirreforma eleitoral serão, de fato, enviados ao Senado, onde deverão passar por uma nova análise e pela construção de um novo relatório. Márlon Reis alerta: “É muito importante que a população cobre o Senado. Não é possível que essa atrocidade passe por lá”. O prazo para avaliação na Casa Revisora é curto: para que tenham vigência nas eleições de 2024 as normas precisam ser sancionadas até o dia cinco de outubro. Tanto a federação formada pelo PT, PCdoB e PV, principal base do governo Luiz Inácio Lula da Silva, quanto o PL, principal partido da oposição, ligado ao ex-presidente Jair Bolsonaro, votaram favoravelmente ao projeto na Câmara. A interpretação dada por destacados analistas da mídia foi a de que a maioria dos deputados, favorável à minirreforma, legislou em causa própria, fazendo valer o corporativismo na proteção a representantes da classe política que não honram os mandatos que exercem e que, mesmo assim, ganham atestado de impunidade para continuarem militando, principalmente, em atividades legislativas. Já houve reações de protesto de entidades que falam por segmentos respeitáveis da sociedade civil, bem como o desencadeamento de pressão sobre os congressistas.
A Lei da Ficha Limpa tornou inelegíveis por oito anos aqueles agentes políticos condenados em decisões colegiadas na Justiça criminal, bem como aqueles que tiveram mandato cassado ou renunciaram para evitar uma cassação. A atual legislação conta essa inelegibilidade a partir da conclusão da pena, enquanto que a proposta da minirreforma eleitoral faz com que a punição seja contada a partir da condenação. Além de alterar o critério de cálculo para a inelegibilidade, ela inclui a exigência de comprovação do dolo específico (intenção de provocar prejuízo) para tornar inelegíveis os agentes políticos que foram condenados em ações administrativas e cria um limite de 12 anos para a suspensão dos direitos políticos de candidatos, aplicada quando alguém é condenado em ação penal. Para Márlon Reis, o projeto torna a inelegibilidade um fenômeno ainda mais frágil do que a situação pré-Lei da Ficha Limpa, daí concordar com as opiniões que estão sendo difundidas de que a minirreforma introduz retrocessos flagrantes na vida política nacional, com danos à sociedade, por via de consequência.
A grande preocupação de Márlon Reis é com os condenados por crimes hediondos, cujas penas, muitas vezes, superam os oito anos de inelegibilidade e os doze de suspensão dos direitos políticos. “O maior exemplo são os casos de terrorismo, estupro, genocídio, crimes contra a saúde pública. Essas são as pessoas mais beneficiadas por essas mudanças. O prazo de inelegibilidade na atual lei é alto porque os casos são hediondos, não são pessoas que cometeram uma mera infração”, analisa Márlon Reis. Antes da criação da Lei da Ficha Limpa, o prazo de inelegibilidade era de três anos, contados a partir da conclusão da pena. O novo texto, porém, dá margem para que uma pessoa condenada por terrorismo possa se candidatar logo após a conclusão da pena, cujo prazo mínimo é de 12 anos. Em casos de pena maior, a candidatura ainda poderia ser validada sem a conclusão da pena. “Cabe ao Senado deter a escalada de aberrações contidas na minirreforma”, finaliza o jurista Márlon Reis.