Nonato Guedes
No mundo da política brasileira, onde é constante a proliferação de casuísmos, na velocidade de interesses corporativos em jogo, nem tudo está perdido, como se depreende da decisão do Senado, que, contrariando a Câmara dos Deputados, enterrou a minirreforma eleitoral cogitada para vigorar no pleito que será travado dentro de um ano. O próprio senador Marcelo Castro, do MDB-PI, que é relator do novo código civil na Casa Revisora, afirmou, ontem, que a minirreforma eleitoral não será mais apreciada ao longo desta semana pelo Senado. Para que as modificações propostas pelo projeto passassem a valer na eleição vindoura, o texto precisaria ser votado e sancionado até amanhã, dia 6, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Segundo informa o “Congresso em Foco”, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), disse a Marcelo Castro que gostaria de tratar dos temas previstos na minirreforma quando da discussão sobre o novo Código Eleitoral e que não gostaria de votar a proposta originária da Câmara dos Deputados de modo açodado ou intempestivo. O próprio relator já havia ventilado à imprensa que as chances de a minirreforma tramitar no Senado, a tempo de ser aplicada para as eleições municipais de 2024, eram baixas, considerando que não havia atmosfera dentro da Casa para acatar a pressão dos deputados, que aprovaram a proposta a toque de caixa, desgastando mais ainda a imagem do Parlamento perante segmentos da sociedade. Em sua conta, numa rede social, Marcelo Castro foi enfático: “O Senado preferiu se dedicar com mais profundidade ao Código Eleitoral, já sob minha relatoria, e fazer uma reforma eleitoral mais ampla e consistente”.
O “Congresso em Foco” havia antecipado que, por falta de um relator e por estar fora da pauta da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), etapa anterior ao plenário, a minirreforma eleitoral aprovada pela Câmara em setembro não deveria ser votada pelo Senado. Houve falta de apoio dos senadores à chamada PEC da Anistia Partidária, que também prevê o maior perdão aos partidos políticos, o que travou a votação da proposta na Câmara. Em si mesma, a proposta já constituía uma imoralidade, um desrespeito ao eleitor brasileiro e vinha abrindo acaloradas discussões entre os próprios parlamentares nas redes sociais ou pela imprensa. O tema chegou a ser tratado como prioridade pelos presidentes de partidos mas foi duramente criticado por movimentos sociais representando entidades vinculadas á causa da transparência. Passou a fazer parte do cardápio de casuísmos, enxertados na legislação, para atender a interesses emergenciais, de ocasião, de cúpulas ou chefias partidárias, não consultando diretamente os interesses do eleitorado que vai às urnas no próximo ano para escolher prefeitos, vice-prefeitos e vereadores nos inúmeros municípios brasileiros.
Constituída por um projeto de lei e outro de lei complementar, a minirreforma eleitoral preconizava, entre outras alterações, afrouxamento nas regras da inelegibilidade, a extinção das prestações de contas parciais, normalmente feitas durante a campanha eleitoral, e a flexibilização do uso de recursos para campanhas femininas, com abertura de brechas para que os recursos fossem utilizados em despesas de candidatos. Em relação a este último aspecto, houve forte mobilização por parte de bancadas femininas com assento no Congresso Nacional, independente de partidos. A deputada federal Luíza Erundina, natural da Paraíba e representante de São Paulo, denunciou, da tribuna da Câmara, que lamentavelmente a nova minirreforma não atende aos anseios da população brasileira, que reivindica, de verdade, uma reforma política estrutural, com a revisão dos aspectos que distorcem o exercício da soberania popular, “o exercício da soberania do povo no exercício do poder”. Erundina falou das tentativas feitas, nos últimos 35 anos, para a realização da reforma política estrutural, sem que as diferentes representações no Parlamento tenham se sensibilizado concretamente para avançar nesse terreno, oferecendo contribuição valiosa ao aprimoramento da própria democracia.
“Sem a democracia direta, sem a democracia participativa, não teremos um sistema político justo, confiável e representativo no país”, protestou a deputada Luíza Erundina, lamentando que as Casas Legislativas não tenham se reunido de forma decidida para regulamentar mecanismos de participação popular no processo de tomada de decisões, com isto amputando a representatividade orgânica da própria sociedade, que deve ser a destinatária principal das reformas periodicamente agitadas no país em momentos históricos mas com pouca solução de continuidade efetiva. “Não é por acaso o registro dos repetidos golpes que enfrentamos, dos recuos que vivenciamos, das perdas de cidadania e soberania. É que não se exercita plenamente a democracia. A Lei Eleitora não precisa de remendos para atender apenas a partidos políticos, mas, sim, de uma reforma ampla, que atenda prioritariamente às demandas da sociedade”, verberou Luíza Erundina em sua manifestação contra os enxertos que são feitos sem aprofundamento da discussão e muito menos compromisso com a transformação no país.