Nonato Guedes
Num momento em que a Igreja da Paraíba enfrenta uma crise ética, envolvendo valores materiais que destoam da prática eclesiástica, é oportuna a leitura de “Profetas e místicos em terra brasileira – história, espiritualidade e lutas”, organizado por Mauro Passos, Newton Andrade Cabral e Wagner Lopes Sanchez, que resgata a trajetória de treze figuras representativas das igrejas no Brasil. Um dos perfilados, por Mauro Passos, presidente do Cehila-Brasil, é dom José Maria Pires, mineiro que se investiu no comando da Arquidiocese Metropolitana da Paraíba entre 1966 a 1995. Ele faleceu em 27 de agosto de 2019 em Belo Horizonte, sendo sepultado no dia 29 do mesmo mês na Basílica de Nossa Senhora das Neves em João Pessoa. Dom José marcou profundamente a história da Igreja em nosso Estado e no país, pelas posições reformistas corajosas que assumiu e pelos confrontos que sustentou com a ditadura militar na fase aguda da repressão política.
Primeiro bispo negro do país, cuja formação foi influenciada pelo Concílio Vaticano Segundo, dom José aliou ao seu ministério uma candente análise crítica da dupla realidade de miséria com que se deparou no Nordeste brasileiro – a da injustiça social, com a divisão de classes reproduzindo modelo injusto e anacrônico implementado no país, e a situação específica de pobreza provocada pela seca cíclica na região, dificultando a sobrevivência das famílias e a conquista das mínimas condições de dignidade humana. Mauro Passos relata que esse contexto levou a Arquidiocese da Paraíba a ensaiar outros modelos de agir e de se posicionar no campo religioso, além de ter que abrir portas de entrada na vida do povo. Dom José, “como um líder religioso, lançador de ideias e frentes de ação, soube construir o trabalho pastoral com uma boa assessoria e com uma liderança que foi sendo construída ao longo do trabalho”, pontua Mauro Passos. Era um cotidiano feito de participação, colaboração e diálogo, tendo como propósito a interação para uma ação compartilhada “do centro para a margem”. O envolvimento e a militância em diversas áreas sociais contribuíram para a mudança e um novo desenho religioso.
Mauro Passos lembra que o novo arcebispo da Paraíba despojou-se do palácio episcopal, indo morar numa casa simples, no Largo de São Francisco, em João Pessoa, decisão coerente com um compromisso do célebre Pacto das Catacumbas, que pregava uma vida em sintonia com o modo ordinário da população. Nesse caminho, dom José modela a teologia da libertação para uma igreja da libertação, tendo competência para trabalhar com os elementos da tradição sem perder de vista a perspectiva de futuro. Com dom José, a mediação das relações não se dava meramente no campo institucional, mas na própria realidade social, nas comunidades, nos grupos, nas pastorais, nas manifestações religiosas com gestos, palavras e com o desenrolar da vida. “Mais ainda: com a desconstrução daquilo que foi lei e mandamento. Tornou-se prático e se reinventou diante da realidade nordestina, vindo daí sua compreensão da importância de que se reveste a religião, através do diálogo com a cultura em suas diversas manifestações”. O processo de luta pelos direitos essenciais dos pobres confrontava-se com um sistema excludente, autoritário, iníquo, absolutamente injusto. Dom José semeou discípulos para a jornada da reconstrução social.
Além do “fazer”, refletido em iniciativas como a criação do primeiro Centro de Defesa dos Direitos Humanos do Brasil e estímulo a movimentos pastorais representativos de diversos segmentos, o apostolado de Dom José Maria Pires na Arquidiocese da Paraíba foi ousado, a partir da descrição de um jeito novo e criativo de viver a fé cristã. “O grande objetivo da Igreja é levar boas notícias ao povo. Isso é evangelizar. A ação pastoral passou a se chamar oficialmente Ação Evangelizadora. Ser capaz de entender o que Deus nos diz através dos acontecimentos”, chegou a pontuar dom José Maria Pires, acrescentando que a pastoral não poderia se constituir apenas em farol iluminando a realidade, mas deveria ser um farol para a vida concreta, a história, a existência humana. Com um ano na Arquidiocese da Paraíba, Dom José apercebeu-se da situação no meio rural e, juntamente com Dom Helder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, liderou um movimento a favor dos trabalhadores rurais. Em 1966 os bispos do Regional Nordeste II da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil-CNBB reafirmam o conteúdo de um manifesto da Ação Católica Operária sobre essa situação, deplorando e condenando todas as injustiças cometidas contra os trabalhadores.
A pedagogia posta em prática por Dom José Maria Pires intentou envolver o catolicismo, tanto por dentro, na gramática da fé, quanto por fora, nas articulações com a realidade, a política e a cultura. “Um conjunto de gestos, palavras e iniciativas emoldura a história de Dom José Maria Pires”, conclui Mauro Passos, lembrando que já na homilia de posse, o arcebispo assim expressou seu projeto: “Fazer da Igreja da Paraíba cada vez mais uma comunhão de homens com Deus e dos homens entre si”. Um projeto capaz de forjar solidariedade com rigor, reflexão e ação, um projeto que, para se tornar viável, deveria estar sempre em movimento. Este, o legado de Dom José Maria Pires, que é perfilado juntamente com figuras como dom Aloísio Lorscheider, Dom Helder Câmara, José Comblin, Dom Paulo Evaristo Arns e Dom Pedro Casaldáliga, profetas e místicos nos seus tempos e nos tempos que correm.