Nonato Guedes
O economista paraibano Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda no governo José Sarney, que sempre foi favorável à reforma tributária, alegando que o país vive numa espécie de “manicômio” de impostos, preocupa-se, nesta reta final das discussões, com o que chama de risco, ou seja, a criação de ‘ilhas de privilégios’ para uns poucos setores da sociedade. Sócio da consultoria Tendências, Maílson afirma que algumas brechas oferecem um retrato do poder dos lobbies para obter ou ampliar privilégios no Brasil e assinala que a lista de problemas começa com a redução do imposto sobre o valor agregado (IVA), que incide sobre o consumo de serviços. O portal Metrópoles informa que vários outros especialistas, que identificam efeitos positivos na reforma a ser votada terça-feira na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, endossam os temores de Maílson quanto a privilégios.
Nóbrega foi ministro da Fazenda entre 1988 e 1990 e tem acompanhado ativamente o desfecho dos debates atualizados acerca do tema da reforma tributária. Ele afirma que setores como a educação e a saúde vão pagar apenas 40% da alíquota do imposto, o que considera inaceitável do ponto de vista social. “Os serviços são consumidos, essencialmente, pelas classes mais ricas. Assim, a família que coloca o filho na melhor escola privada, usa os melhores hospitais e tira férias nos melhores lugares do mundo, vai pagar menos imposto. Enquanto isso, o pobre, à exceção da cesta básica, vai ser taxado pela alíquota cheia”, argumenta. O ex-ministro pondera que se a alíquota do IVA for fixada em 25%, um valor hipotético, citado para facilitar o exemplo, os que consomem serviços de educação e saúde pagarão 10%. “A agravante é que, além de beneficiar as classes mais ricas, a redução de alíquotas tende a provocar distorções na economia. Isso porque as empresas buscam se enquadrar nas categorias que fixam cobranças mais baixas e, com isso, tendem a adotar tecnologias mais eficientes. E isso conspira contra o crescimento do país”, prossegue.
Para o ex-ministro da Fazenda, “argumentos entre questionáveis e falaciosos sustentaram a concessão de privilégios”, exemplificando: “Alguns disseram que a reforma aumentaria o custo da educação, por isso foi concedida uma redução da alíquota para o setor. Isso não é bem verdade. Ela vai aumentar o custo, mas para os ricos. O problema é que a opinião pública comprou essa ideia”, esclarece Maílson da Nóbrega. Observa que o mesmo ocorreu em relação ao saneamento básico. “De fato, o custo vai aumentar para o serviço. Mas a melhor saída teria sido fazer com que a alíquota do setor aumentasse gradativamente, num período de dez anos, em vez de conceder qualquer privilégio de redução do imposto”. Ele considera que outros segmentos, como é o caso da agricultura, também estão sendo beneficiados pelo projeto em discussão. Maílson pondera que alguns setores, por conta de características especiais, podem receber um tratamento diferenciado, mas isso deve ser feito por meio da criação de regimes especiais. Esses segmentos, em muitos países, nota o ex-ministro, incluem o sistema financeiro, pois uma alíquota cheia poderia encarecer em demasiado os empréstimos, a construção civil e o turismo.
Nóbrega acrescenta que a experiência internacional acumulada com o IVA mostra que a melhor solução é a alíquota única, sem nenhuma distinção para qualquer segmento. “Se houver uma justificativa razoável para que um setor mereça um tratamento especial, o melhor é que ele seja concedido por meio de um subsídio e não pela redução da alíquota. Mas, como diz o economista Marcos Lisboa, somos o país da meia-entrada”. Para Maílson, há um problema adicional em quaisquer privilégios: uma vez obtidos, eles se perpetuam. No projeto que tramita no Senado, lembra, foi especificada uma revisão dessas concessões a cada cinco anos. Mas uma vez obtido o benefício, “duvido que alguém mude alguma coisa depois”. Conforme ele, é uma ingenuidade pensar que vai haver revisão. “Se os grupos foram competentes para conseguir o privilégio, serão mais ainda para lutar pela sua renovação”, pontua o economista.
Por sua vez, o advogado e economista Eduardo Fleury, consultor do Banco Mundial, afirma que um dos privilégios mais “inexplicáveis”, assim como “inaceitáveis”, da atual reforma tributária, é o que beneficia as profissões regulamentadas, cujos integrantes estão fora do Simples. Advogados, engenheiros, médicos e economistas pagarão 75% da alíquota do imposto sobre o consumo. “Isso não faz sentido sob nenhum aspecto”, adverte ele, emendando: “Do ponto de vista de distribuição de renda é ruim, porque favorece os profissionais que ganham mais. Além disso, beneficia pouquíssimas pessoas”. Fleury considera que no caso dos impostos sobre consumo, o alvo da atual reforma, a melhor maneira de evitar que as mudanças acentuem, ou mesmo perpetuem a desigualdade, é o mecanismo de cashback, que prevê a devolução dos tributos para as famílias mais pobres e não cria brechas para a redução das alíquotas. O atual projeto prevê o uso dessa ferramenta em casos como a conta de luz. “Esse mecanismo oferece o melhor resultado sob o ponto de vista da distribuição de renda”, afirma o advogado. A reforma tributária, que foi aprovada de forma expressiva na Câmara dos Deputados, encaminha-se para um desideratum no Senado Federal, pondo fim a uma polêmica de quatro décadas na História do Brasil.