Nonato Guedes
Há 30 anos, um fato de grave impacto e repercussão histórica no Brasil aconteceu no restaurante “Gulliver”, na orla marítima de João Pessoa, envolvendo dois homens públicos de prestígio na Paraíba e na região: o então governador Ronaldo Cunha Lima e o ex-governador Tarcísio de Miranda Burity, que chegaram a ser aliados políticos dentro do extinto PMDB. Era uma sexta-feira do dia 5 de novembro de 1993, quando Ronaldo adentrou no ambiente e disparou dois tiros de revólver contra Burity, em represália a supostos ataques deste a Cássio Cunha Lima, filho de Ronaldo e superintendente da Sudene. Levado às pressas ao Hospital Samaritano, Burity, em meio à situação delicada, escreveu um bilhete à família apelando para não haver vingança. Ele conseguiu escapar, mas ficaram sequelas. Burity faleceu em 2003, enquanto Ronaldo, que ainda exerceu mandatos parlamentares em Brasília, morreu em 7 de julho de 2012.
O pivôt do incidente teria sido o bispo Júlio Paiva, da Igreja Católica Brasileira, apontado pelos ronaldistas como aliado de Burity e que presidia, em Campina Grande, o Partido Municipalista Nacional, PMN, uma legenda de aluguel. Paiva, natural de Minas Gerais, ocupou três minutos em cadeia nacional de rádio e TV na quinta-feira à noite para fazer ataques à honra de Cássio e ao governo de Ronaldo, bem como a outros integrantes do “clã” Cunha Lima. Para ronaldistas, Júlio Paiva era instrumento de Burity, que, por sua vez, dizia não ter ligações políticas com ele. Desnorteado, o próprio Ronaldo foi levado para Campina Grande, onde o automóvel atravessou incólume os postos da Operação Manzuá, mas foi interceptado por agentes da Polícia Rodoviária Federal no posto situado em Santa Terezinha, a poucos quilômetros da cidade. Foi lavrado o auto de prisão em flagrante e Ronaldo conduzido à delegacia da PF em Campina, onde ficou até zero hora do dia seis, sendo liberado graças a um habeas-corpus impetrado pelo advogado Saulo Ramos e concedido pelo ministro William Paterson, do Superior Tribunal de Justiça.
O governo foi assumido pelo vice-governador Cícero Lucena. Ronaldo, em declarações à imprensa, alegou ter defendido a honra do seu filho e a sua própria vida e confessou jamais ter imaginado enfrentar situação como aquela. “Não sou capaz de matar uma mosca”, repetia. Posteriormente, tentou pedir perdão diretamente a Burity, que avisou já tê-lo perdoado, recusando as investidas para que Ronaldo fosse visitá-lo em Camboinha, na sua casa. A repercussão do episódio não afetou a popularidade de Ronaldo, que em 1994 foi eleito senador juntamente com Humberto Lucena, na chapa encabeçada por Antônio Mariz (vitorioso) ao governo do Estado. “O destino me fez, inesperado e desesperado, prisioneiro dos meus sentimentos e refém das minhas emoções. Uma marcha inexorável, paralela à minha existência, me fez cruzar com o meu acusador. Uma altercação, um gesto de reação, uma menção de revide, aí se deu o inevitável”, exclamou.
Embora Ronaldo tenha aberto mão da imunidade parlamentar para responder a processo, a tramitação do caso na Justiça seguiu outro ritual, livrando-o de punição concreta e descendo para instância menor, onde se perdeu nos encaninhos da Lei. Mesmo sendo começo de fim de semana, a grande imprensa deu plantão na Paraíba. A revista “Veja” deslocou um repórter especial a João Pessoa e publicou a matéria de capa “Denúncias respondidas a balas”. O “incidente no Gulliver” causou perplexidade, sobretudo, na Paraíba, e foi comparado por historiadores, guardadas as proporções, ao episódio de 26 de julho de 1930, quando o então presidente do Estado, João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque, foi assassinado pelo desafeto político João Dantas na Confeitaria Glória, no Recife.
No jornal oficial “A União”, do qual eu fui superintendente, vivi um drama à parte para registrar a notícia sem ferir susceptibilidades nem criar problemas de ordem legal para quem quer que fosse. “A União” reagiu com o título “Incidente no Gulliver leva Ronaldo a se afastar do governo” e dedicou a primeira página a informações gerais sobre o estado de saúde de Burity, a investidura de Cícero Lucena e a um editorial sobre o assunto. Jornais impressos como o “Correio da Paraíba” foram mais contundentes ainda: “Ronaldo atira em Burity em legítima defesa da honra”, escreveu o “Correio da Paraíba”.
Ao elaborar, juntamente com colegas de jornal, o material e, sobretudo, o título da matéria, consultei três renomados jornalistas, amigos meus, pedindo-lhes opiniões sobre como deveria tratar o assunto. “Sinceramente, eu não gostaria de estar na sua pele”, ouvi, quase em uníssono. Decidi, então, de comum acordo com companheiros de editoria e reportagem assumir a minha pele e imprimir o tratamento que me cabia na ocasião. Devo ressaltar que nunca perdi a amizade, nem de Ronaldo Cunha Lima, nem de Tarcísio de Miranda Burity, e aos dois ouvia com atenção, nas versões a respeito do enredo do triste episódio que marcou a história da Paraíba.
O amigo lembrou de encontrar um pivô para esclarecer o crime, mas esqueceu de dizer o nome do cidadão que foi buscar Ronaldo na residência oficial para atirar em Burity. Esqueceu também de dizer que Ronaldo estava sob forte ação de bebidas alcoólicas quando foi lhe foi sugerido defender a honra do filho. Esqueceu muito.