Nonato Guedes
Javier Milei, representante da extrema-direita, uma espécie de Jair Bolsonaro da Argentina, ganhou as eleições presidenciais, no domingo, em segundo turno, derrotando Sergio Massa, ligado ao peronismo e que tinha o apoio declarado do Partido dos Trabalhadores no Brasil. O resultado das urnas, que deve ser democraticamente respeitado, como recomendou o próprio presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, propicia um contraponto na guinada ideológica de governos da América do Sul, motivando a extrema-direita a retomar o espaço perdido nos últimos quatro anos na região. Em 2019, presidentes considerados de direita comandavam dez dos doze países do subcontinente. Hoje, são apenas três. Massa reconheceu a derrota e delegou ao vitorioso a responsabilidade de conduzir com seriedade os destinos do país portenho. Em outras palavras, desejou ao vencedor “as batatas”.
Economista, 53 anos, Javier Milei se autodenomina “anarcocapitalista” e integra a coalizão conservadora La Libertad Avanza. Entre suas propostas de liberalismo extremo estão a redução drástica de subsídios e do aparato estatal. Milei já defendeu o fechamento do Banco Central, a saída do Mercosul e a dolarização da economia, medida encarada como inviável por especialistas menos radicais, conforme reportagem do “Congresso em Foco”. Também declarou que não negociará com o governo brasileiro enquanto Luiz Inácio Lula da Silva for o presidente, atitude considerada improvável por analistas em virtude do peso comercial do Brasil para a economia argentina. Na verdade, o presidente eleito da terra natal do papa Francisco cometeu, com tal declaração, uma bravata, das tantas que protagonizou durante a campanha para sensibilizar um eleitorado inseguro quanto ao rumo da economia no país vizinho. A bravata é típica de políticos fanfarrões – cujos exemplares no Brasil da história recente foram Jânio Quadros, Fernando Collor de Mello e Jair Bolsonaro. O primeiro renunciou em meio ao teatro armado para obter poderes ditatoriais, no que fracassou. O segundo foi despejado do Planalto por meio de impeachment e o terceiro tornou-se o primeiro presidente da Era Republicana a não se reeleger.
Esses fenômenos acontecem sazonalmente não apenas na América Latina, mas mesmo em potências influentes, a exemplo do temerário Donald Trump nos Estados Unidos, varrido do poder quando orquestrava o continuísmo sem conteúdo. A mídia internacional compara que a eleição na Argentina foi tão polarizada quanto o pleito que se desenrolou no Brasil em 2022 – metade do eleitorado rejeitava um outro candidato. No entanto, o cenário dividido resultou em avanço do candidato que prometeu mudanças e na retórica da extrema-direita. Javier Milei, a exemplo de Bolsonaro, apresentava-se como um “outsider” da política, mas no poder fez as piores concessões políticas de que se tem notícia na história brasileira. Outro ponto central na campanha do recém-eleito presidente da Argentina foi a Justiça Eleitoral, em um eco dos representantes políticos de direita nos Estados Unidos, Donald Trump, e no Brasil, Bolsonaro, de que haveria uma suposta tentativa de fraude nas eleições. Apesar das falas e de não apresentar provas, conforme a imprensa argentina, Milei criticou o que chamou de “campanha do medo” durante o segundo turno e se disse vítima de estratégias sujas.
No Brasil, onde a campanha argentina teve reflexos de exacerbação, a própria primeira-dama, Janja da Silva, chegou a se manifestar com metáforas a favor de Sergio Massa, o que foi considerada uma intromissão inadequada, malgrado o seu direito de preferência por quem quer que seja em qualquer parte do mundo. Oficialmente, a executiva nacional do PT apoiou o peronista Sergio Massa nas eleições presidenciais e comparou Milei a Bolsonaro, como se na vizinhança estivesse sendo travado um terceiro turno da corrida presidencial de 2019 no Brasil. Para os petistas, Milei personifica a extrema-direita e o ultraliberalismo econômico do salve-se quem puder, realidade que brasileiros e brasileiras conhecem muito bem. O agora presidente eleito recebeu apoio ostensivo da família Bolsonaro no primeiro turno, como expressão de sentimento acumulado de revanche contra a esquerda brasileira. A candidata que alcançou o terceiro lugar nas eleições argentinas, Patrícia Bullrich, apoiou oficialmente Milei no segundo turno da disputa – ela teve 23% dos votos e pode ter sido fiel da balança no processo. Ex-ministra do presidente Maurício Macri, Bullrich é expoente da direita argentina e adepta de um modelo econômico liberal.
Os analistas políticos no Brasil reconhecem que a vitória de Milei deve ter efeitos geopolíticos. O Brasil é, atualmente, o segundo maior parceiro comercial da Argentina, tendo fornecido mais de 19% das importações ao país em 2022. Essa parceria também acontece no meio político, sendo os dois países as forças dominantes dentro do chamado Mercosul. O Brasil articulou a entrada do vizinho para o bloco dos Brics, como lembrou a jornalista Gabriella Soares no “Congresso em Foco”. Apesar de Milei ter adotado um discurso abertamente hostil ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante a campanha, tendo cogitado, também, a possibilidade de retirar o país do mapa do Mercosul, a sua equipe de campanha fez acenos ao Itamaraty, indicando tratar-se de uma hostilidade apenas retórica e eleitoral. O fato é que a ascensão de Milei cria uma zona de sombra para a convivência com o Brasil e desperta temores de beligerância que apenas enfraqueceria a relação de poder no subcontinente. Mas convém aguardar os desdobramentos para uma avaliação melhor sobre o grau de pragmatismo que o ungido das urnas é capaz de exercitar para, também, sobreviver.