Nonato Guedes
As obras de destaque na literatura paraibana neste ano tiveram caráter de resgate histórico, como o livro do renomado jurista Solon Benevides sobre a Constituinte e a Constituição da Paraíba em 1989 e, no campo político, o valioso trabalho assinado por Francisco de Sales Gaudêncio e Eduardo Peruzzo, sobre o ex-governador e ex-senador José Maranhão, editado pelo Senado Federal como parte da coleção “Grandes Vultos” que honraram aquele Poder. Tivemos, ainda, a contribuição do desembargador Marcos Cavalcanti, em parceria com o falecido jornalista Hélio Zenaide, que resultou no documentário “Governantes da Paraíba”, abarcando períodos distintos da História local. Chamou a atenção, porém, a vasta, minuciosa biografia do polêmico jornalista Severino Ramos (Biu Ramos), falecido em julho de 2018, tendo como autor Samuel Amaral, um jovem talento da nova literatura da Paraíba, natural de João Pessoa, jornalista, escritor e pesquisador, além de funcionário da UFPB.
Intitulado “Biu Ramos: O timoneiro da Arca de Sonhos”, editado por “A União”, Samuel ressuscitou, com méritos e em grande estilo, o jornalismo investigativo – que andava em desuso aqui e alhures, desvendando com profundidade o perfil de um personagem icônico que marcou época no jornalismo e, por extensão, na Cultura regional. Mestre em Jornalismo pelo Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal da Paraíba e pesquisador colaborador da Fundação Casa de José Américo de Almeida, Samuel Amaral demonstrou que, mesmo bastante jovem, já ingressou no clube respeitável dos intelectuais de prestígio, impondo-se pelo estilo inovador da narrativa, pelo rigor e densidade na apuração de fatos e episódios e pela conexão primorosa que soube estabelecer entre as múltiplas facetas do biografado. Vamos combinar que não é tarefa fácil a de perfilar Biu Ramos na sua grandiosidade e na sua dimensão plural. E, no entanto, Samuel atravessou com galhardia o desafio a que se propôs, empreendendo o que o Doutor em História Social pela USP Bruno Gaudêncio definiu como “jornada biográfica”. Fui um dos entrevistados por Samuel para o seu trabalho de dissertação de mestrado, sob a orientação da professora doutora Joana Belarmino de Sousa, e fui apresentado, com grata surpresa, a uma revelação da intelectualidade paraibana no seu ciclo mutante.
Severino Ramos foi, destacadamente, um dos maiores repórteres da história da imprensa paraibana, alcançando repercussão entre as décadas de 1950 e 2000, não só pela sua escrita impecável como pela atenção às questões sociais e políticas do seu tempo – assim descreve Bruno Gaudêncio no prefácio ao livro de Samuel. Incursionou, também, pela imprensa nacional, como correspondente do jornal “Folha de São Paulo”, além de ter atuado em publicações das Organizações Bloch no Rio de Janeiro. Como um dos mais lidos e respeitáveis colunistas de jornais paraibanos, a exemplo de “O Norte” e “Correio da Paraíba”, Ramos enveredou não somente pela análise ou pelo comentário político, mas também pela crítica de costumes e pela crônica dos valores da cidade. Negro, vítima de preconceito racial estrutural – uma das mazelas ainda persistentes no Brasil de hoje – tinha origens humildes, como descendente de família de operários de usinas de engenho na região da Várzea da Paraíba. Mas, graças à sua obstinação e inteligência, ocupou espaços de forma extraordinária na sociedade local, praticamente “arrombando as portas” das elites para ocupar o lugar que lhe estava reservado no contexto que vivenciou.
O destemor levou Severino Ramos a produzir obras impactantes como “Os Crimes que Abalaram a Paraíba”, mencionando casos de grande repercussão na crônica policial que envolviam figurões da sociedade e que buscavam escafeder-se nas malhas da impunidade reinante como legado de um sistema judiciário ainda falho em suas decisões e responsabilidades. Biu enfrentou governadores, com sua pena fecunda e livre, de que foi exemplo o combate sem trégua a Wilson Braga, com quem rompeu, de forma passional, quando explodiu o trucidamento do jornalista e empresário Paulo Brandão Cavalcanti. Já havia se indisposto, lá atrás, com Ernani Sátyro, com quem não tinha maiores afinidades. Suas maiores ligações eram com os ex-governadores João Agripino Filho e Tarcísio Burity. Sobre o primeiro, escreveu o livro “O Mago de Catolé”, e, sobre o segundo, escreveu “Burity – Esplendor & Tragédia”. Na verdade, teve mais de uma dezena de obras publicadas. Foi, duas vezes, presidente da Associação Paraibana de Imprensa, exerceu a Secretaria de Cultura no governo Burity, a presidência da Rádio Tabajara e a superintendência de “A União”. Tentou fazer carreira política, candidatando-se a deputado estadual em 1986, mas não logrou êxito.
Uma das mais acesas polêmicas compradas por Biu Ramos e que teve repercussão, inclusive, nas camadas populares, envolveu a contratação de professores do Sul do país pela UFPB. Ramos qualificou-os como “alienígenas” e sustentou embates prolongados que acabaram por atrair manifestações de segmentos da sociedade, com acusações a ele de “xenofobia”. A credibilidade de Biu fez com que ele tivesse ao alcance um verdadeiro dossiê sobre os docentes sulistas, utilizando com liberdade, nas suas colunas, as informações de que dispunha. A professora Joana Belarmino destacou a sagacidade literária de Samuel Amaral, que se refletiu “numa obra de sabor único, em que o autor optou pela narrativa linear”. Têm sido inúmeras as manifestações favoráveis ao trabalho de pesquisa do escritor Samuel Amaral, que indiscutivelmente injetou novas perspectivas no relato de fatos e na abordagem dos apanhados historiográficos . Como ele deixou claro, Biu Ramos não cabia em nenhuma “caixinha ideológica”, porque, não obstante ser rotulado como de direita, denotava preocupações sociais e adesão a princípios da solidariedade como base do fim das injustiças e distorções. “O timoneiro da Arca de Sonhos” é obra indispensável em qualquer cadinho de quem se interessa pela História e, com certeza, foi o ponto de partida de Samuel Amaral na desafiante missão a que se entrega com denodo e inteligência privilegiada. Ganha a Paraíba, com o laboratório de pesquisas, descobertas e revelações deste valoroso expoente das nossas letras, oxigenando-se o movimento histórico em sua vertente transformadora e revolucionária.