Nonato Guedes
O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que se encontra na Argentina para o “convescote” da direita com a posse do imprevisível Javier Milei na Casa Rosada, demonstrou em entrevista a uma emissora de rádio de Buenos Aires que ainda não digeriu a rejeição enfrentada no Nordeste brasileiro na disputa que encarou em 2022 tentando a reeleição, sendo esmagado eleitoralmente pelo adversário petista Luiz Inácio Lula da Silva. Bolsonaro explicou a jornalistas portenhos que, no Brasil, nordestinos “fogem” para São Paulo por causa da esquerda. Didaticamente, revelou que a cidade que tem mais nordestinos no Brasil é São Paulo devido às administrações de esquerda nos Estados do Nordeste. Essas unidades federativas, disse o ex-presidente, não têm perspectivas, não oferecem meios de sobrevivência e a pobreza sempre foi presente.
Bolsonaro, que foi um fracasso como presidente no único mandato que exerceu e que entrou na História política recente do Brasil como o único presidente não reeleito, entre os que se aventuraram a tanto, é também um fracasso como ‘sociólogo’ que tenta interpretar fenômenos políticos em nosso país. A migração de nordestinos para centros maiores como São Paulo é remanescente de outros períodos históricos, inclusive aquele em que vigorou uma ditadura militar, por 21 anos, entre 1964 e 1985 e que acenava com um Brasil que “ia para a frente” enquanto, concretamente, a nação ia para trás, com estagnação econômica e inflação exacerbada. Essa “vaga” de nordestinos rumo ao Sul, Sudeste e Centro-Oeste prosperou quando os Estados eram administrados por governadores “biônicos”, assim denominados os políticos e tecnocratas premiados com indicações fechadas, patrocinadas por clubes de generais que comandavam com o bastão do Ato Institucional Número Cinco e a ameaça da baioneta calada. A esquerda havia perdido a guerra pelo poder e, além do mais, fora escorraçada de forma covarde, purgando o rosário de prisões arbitrárias, de torturas abjetas, num cenário cinzento marcado pela censura à imprensa, pelas cassações de mandatos, pelos desaparecimentos políticos. Era o Brasil dos órfãos do talvez, das viúvas do quem sabe, uma página que bolsonaristas e milicianos tentaram reconstituir em versão atualizada mas que não prosperou, por óbvio.
No Nordeste que hoje Bolsonaro diz estar contaminado pela esquerda, as oportunidades eram escassas para a maioria do povo, iludido por um falso milagre econômico que não redistribuía a renda nem socializava a prestação de serviços pelo poder público. Enquanto isso, campeava desenfreada a corrupção, por agentes políticos protegidos pelo guante da ditadura e por empresários desonestos beneficiários da indústria dos incentivos fiscais, dos famosos 34/18 da Sudene, que não exigiam a contrapartida dos investimentos e muito menos a prestação de contas quanto ao dinheiro público recebido e torrado nas ilhargas do patrimonialismo secular brasileiro. Este era o Brasil do “Ame-o ou Deixe-o”, um apelo ufanístico de mau gosto que indicava claramente a exegese de uma triste época nos trópicos. Sobre esse passado recente e doloroso, Bolsonaro e seus asseclas da chamada nova direita brasileira não apontam culpados, não sinalizam responsabilidades. Fazem o exercício da má-fé, típico dos irresponsáveis, insensatos e sem compromisso com a verdade histórica. São os proxenetas da retórica adrede ensaiada para confundir a opinião pública, para tumultuar o debate sério e objetivo sobre as mazelas deste imenso território.
O que surpreende é que, ainda agora, expoentes do falseamento da verdade como Jair Bolsonaro tenham ambientes lá fora para continuar espalhando fake news e distorcendo a realidade brasileira, na analogia inevitável entre o passado e a atualidade. O governo de Jair Bolsonaro, ainda bastante recente, foi um pesadelo para o Nordeste, tanto porque não carreou investimentos estruturantes e indispensáveis para a região se desenvolver como porque o próprio presidente da República recusou-se a dialogar com governadores eleitos de forma legítima mas que professavam credo ideológico diferente, situando-se na centro-esquerda ou na esquerda propriamente dita. Bolsonaro, que não tem “expertise” em assuntos ideológicos e que jamais se aprofundou na leitura de conceitos que espalha ao vento, tem interesse apenas em sustentar a polarização. Ele se dirige, especificamente, para o seu público, confinado num “gueto” que não tem perspectiva porque não produz para o país e é especialista, mesmo, na promoção de atos terroristas, como os que foram verificados no dia 8 de Janeiro em Brasília. São os remanescentes milicianos, que se iludem com a ideia de um Mito que, na verdade, é ídolo com pés de barro.
Independente de ser governado por políticos de esquerda, o Nordeste brasileiro, hoje, é a região que mais avançou na busca de perspectivas e de viabilização de alternativas para o estado de pobreza em que se encontrava. Os resultados já começaram a aparecer no próprio governo Bolsonaro, quando se formou um Consórcio Interestadual de Desenvolvimento, congregando gestores, em alternativa ao sufocamento imposto pelo Poder Central. Há nichos evidentes de progresso, de desenvolvimento, na região, com a exploração de potencialidades locais e descoberta de opções como as energias renováveis. A realidade das desigualdades está mudando substancialmente, e até o turismo, que nunca conseguiu emplacar como alternativa, faz a festa da economia em diferentes Estados do circuito nordestino. Bolsonaro e seu governo, infelizmente, não são partícipes da construção dessa história. Ficaram marginalizados, engolfados pela burrice ideológica e pelo extremismo político, sinônimos de intolerância que a maioria da sociedade rejeita porque tem outras prioridades no radar, no horizonte das suas aspirações e perspectivas.