Nonato Guedes
O golpe civil-militar completará, a 31 de março, sessenta anos de seu desencadeamento no Brasil, e a constatação preocupante que se faz é que a ameaça ao regime democrático, com tentativas de retorno ao autoritarismo, ainda persiste, agitada pelo ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, um capitão reformado pelo Exército por insubordinação, que chegou à suprema magistratura pelo voto e que tem se revelado um mistificador que procura confundir consciências dos menos avisados. O jornalista Ricardo Kotscho, em artigo publicado no UOL, lembra que a ditadura militar instaurada em 1964 acabou oficialmente em 1985, com a posse do primeiro presidente civil, José Sarney, sucedendo a Tancredo Neves que fora eleito por via indireta, no colégio eleitoral, e que faleceu por problemas de saúde antes da investidura. Com Sarney, instaurou-se a chamada Nova República, que sobrevive de ensaios de aprimoramento, sobretudo no que diz respeito a avanços sociais e à execução de políticas públicas de inclusão para reparar duas décadas de retrocesso na vida do país.
A respeito dos fantasmas do golpismo que teimam em serpentear no horizonte institucional brasileiro, Kotscho ressalta que na agora célebre reunião do começo de dezembro de 2022, em que o capitão Bolsonaro apresentou seu roteiro de golpe ao ministro da Defesa e aos três comandantes militares, para impedir a posse do presidente eleito em outubro – Luiz Inácio Lula da Silva (PT), houve empate em 2 a 2, um sinal inequívoco de que a tese recorrente do golpismo encontrou apoiadores. O ministro da Defesa, Paulo Sergio, e o comandante da Marinha, almirante Garnier, endossaram o plano sinistro, enquanto os comandantes do Exército, Freire Gomes, e o da Aeronáutica, tenente-brigadeiro Baptista Jr. Se opuseram. O presidente Jair Bolsonaro não teve coragem de desempatar e assinar o decreto do estado de sítio mostrado aos ministros, primeiro passo para a deflagração do golpe. Somente por isso, e graças às instituições e aos eleitores, não vivemos um novo 1964. Bolsonaro foi derrotado por Lula, tornando-se o primeiro presidente não reeleito desde que passou a vigorar o instituto da recondução ao Executivo no país, mas ainda hoje, em meio a denúncias e processos a que responde, mantém-se irresignado na defesa da aventura golpista.
Enfatiza Ricardo Kotscho: “Do general Mourão Filho ao capitão Bolsonaro, de tempos em tempos, o poder militar ameaça a nossa jovem e frágil democracia, desde a Proclamação da República, porque o poder civil nunca teve coragem para discutir, de fato, o papel das Forças Armadas no Brasil em tempos de paz. A julgar pelo nível dos oficiais superiores envolvidos na trama golpista de 2022, uma ampla reforma nas Forças Armadas, definindo claramente suas funções, missões e limites, tem que começar pelo currículo e ensino nas escolas militares, que ainda reproduzem o clima da Guerra Fria, como era em 1964. Por isso, até hoje, eles estão caçando “comunistas” para atacar o atual governo”. Para Kotscho, os líderes civis, inclusive o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, evitam mexer no tabu do poder ou da influência militar nas instituições brasileiras e, assim, fornecem o pretexto para alimentar teorias conspiratórias. “Assim, eles (os golpistas) avançam e recuam, como agora em que se sentem acossados pelas investigações sobre a preparação do golpe flopado, que pode levar para a cadeia brevemente o capitão e seus generais”.
– Se vivêssemos tempos de guerra real contra outro país, estaríamos perdidos. Basta ver o que está acontecendo nas nossas fronteiras amazônicas, que mais parecem um queijo suíço, onde o crime organizado do narcotráfico e do contrabando de ouro e madeira a cada dia avança mais, por terra, pelos rios e pelo ar, sobre as áreas indígenas demarcadas, destruindo a floresta, a fauna, a flora e a vida do povo ribeirinho, afetando o clima no planeta. Nossos bravos patriotas fardados preferem ficar bem longe dessas fronteiras, onde são mais necessários, de preferência morando em boas cidades litorâneas lotadas de quartéis. Quando são convocados a atuar para proteger e levar cestas básicas ao povo yanomami pedem verbas extras, como se fossem uma empresa de segurança privada, a exemplo do que aconteceu recentemente. O polpudo orçamento anual das Forças Armadas nunca é suficiente – registra Kotscho, concluindo: “Enquanto esta questão militar não for resolvida, de uma vez por todas, o poder civil e a democracia continuarão ameaçados todas as vezes em que as Forças Armadas se intrometerem na política, eleições e urnas eletrônicas. Para boa parte deles, 1964 ainda não acabou”.
A ditadura militar que vigorou no Brasil de 1964 a 1985 deixou um rastro de destruição na conjuntura nacional. Ela se caracterizou por fases de radicalização e em 1968 legou ao país o Ato Institucional Número Cinco, cassando mandatos de parlamentares e de políticos tidos como contestadores, atingindo, ainda, as Universidades, a Igreja progressista, o próprio Judiciário e outros segmentos ativos da sociedade. É preciso recordar, também, o rosário de mortes, torturas, prisões ilegais, atentados aos direitos humanos, que chegaram a mobilizar entidades internacionais e a provocar protestos de governos democráticos de vários continentes. Desencadeada a pretexto de “combater o comunismo e a corrupção”, o movimento que se autodenominou revolucionário não melhorou a qualidade de vida do povo – pelo contrário, agravou as disparidades e elevou o contingente de pessoas situadas abaixo da linha da pobreza, e ainda tolheu gravemente as liberdades públicas. O transcurso dos 60 anos do golpe é uma oportunidade renovada para que a sociedade brasileira possa reforçar suas convicções democráticas e seus compromissos com o Estado de Direito, repelindo todas e quaisquer orquestrações para uma volta ao “status quo ante”. Ditadura, nunca mais!