Nonato Guedes
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pessoalmente, e o seu governo, não vão estar representados nas manifestações públicas organizadas para hoje em 19 cidades, sendo 16 capitais brasileiras e duas cidades da Europa – Lisboa, em Portugal, e Barcelona, na Espanha para relembrar os 60 anos da ditadura militar instaurada no país. A tarefa de resgatar a memória dos acontecimentos nefastos foi delegada a expoentes do Partido dos Trabalhadores e a organizações de esquerda, que aproveitarão para pedir a prisão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). No mês passado, Lula afirmou que não quer ficar “remoendo o passado” e que está mais preocupado com o 8 de Janeiro de 2023 do que com o golpe de 31 de março de 1964. O golpe de 8 de Janeiro foi uma aventura fracassada para tentar depor o presidente Lula. A ditadura militar durou 21 anos e foi marcada pelo desaparecimento de adversários políticos, tendo culminado com os militares anistiados.
A postura de Lula provoca discussões e polêmicas intermináveis junto à esquerda brasileira, pelo receio de que venha a contribuir para a tentativa de “apagão” da História. É um péssimo exemplo porque pode criar um precedente perigoso, mediante o qual a regra do “esquecimento” aplicada à longa noite das trevas iniciada em 1964 pode valer, lá na frente, para o 8 de Janeiro, que também foi deplorável e sinalizou permanência de bolsões antidemocráticos na conjuntura política-institucional do país. O presidente Lula foca no imediatismo por razões eleitoreiras – ele é candidato declarado à reeleição em 2026 e tem consciência de que, diante das limitações do terceiro mandato em termos de resultados, tem que investir taticamente na polarização ideológica, alimentada desde a Era Bolsonaro por direitistas tresloucados que ativaram espíritos radicais adormecidos, numa estratégia adrede concebida para solapar as instituições, minar a autoridade dos poderes constituídos e descredibilizar a própria imagem do Brasil no exterior, como táticas de guerrilha para o assalto ao poder. Mas, nesse ponto, Bolsonaro e os golpistas de 64 se aproximam ou convergem, com a diferença de que estes últimos foram profissionais e conseguiram manter-se no Planalto por pelo menos duas décadas.
De acordo com lideranças de partidos da base governista ouvidas pelo jornal “O Estado de S. Paulo”, a ausência do presidente e dos ministros nas manifestações antigolpistas leva em consideração a postura adotada por Lula de não se posicionar sobre os 60 anos da ditadura de 1964 por não querer elevar a tensão nos quartéis ou fomentar focos de atrito que levem à balbúrdia institucional. Em reunião com auxiliares no começo deste mês, o petista proibiu que os chefes das pastas se posicionem publicamente sobre o golpe, explicando que a decisão busca evitar que a data convulsione o ambiente político nacional. O Planalto também receia que a presença da cúpula do governo sinalize uma resposta ao ato convocado por Jair Bolsonaro na Avenida Paulista, em 25 de fevereiro. O ex-presidente reuniu, como se recorda, centenas de milhares de apoiadores e, na ocasião, minimizou as provas obtidas pela PF no inquérito que apura a tentativa de golpe após as eleições de 2022, além de reivindicar anistia para os que foram presos pelo ataque aos prédios dos Três Poderes, em Brasília.
O atual governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva enfrenta uma queda dos índices de aprovação, atestada pelos principais institutos de pesquisa do país. Segundo lideranças partidárias, o atual cenário pode fazer com que uma convocação do presidente para as manifestações não cause tanto efeito na mobilização, o que o enfraqueceria nas discussões sobre a sua popularidade em comparação com a de Jair Bolsonaro. Em nota oficial, publicada no site do PT e enviada para diretórios estaduais e municipais da sigla, o partido convidou filiados e apoiadores para irem às ruas defender as pautas da “defesa da democracia” e a exigência de punição rigorosa daqueles que atentaram contra o Estado Democrático de Direito, sem citar explicitamente o nome de Bolsonaro. Na convocação oficial, o líder do PT na Câmara, Odair Cunha (MG), afirma que os atos deste sábado vão unir “movimentos sociais e trabalhadores do campo e da cidade” para pedir a prisão dos envolvidos na tentativa de golpe de Estado. “Vamos reagir e exigir a punição daqueles e daquelas que atentaram contra o Estado Democrático de Direito”, enfatizou o parlamentar. Lideranças de movimentos sociais criticaram a decisão do governo Lula de não participar do evento. Em Salvador, haverá o principal ponto de encontro dos manifestantes, com a presença da presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann, e de líderes do governo federal.
Cabe lembrar que entre as milhares de vítimas da ditadura militar de 1964 figura a ex-presidente Dilma Rousseff, que era militante de organizações de esquerda e foi presa e torturada pela sua participação nos protestos de movimentos sociais que eclodiram quando a ditadura se institucionalizou no país, recorrendo a sucessivos atos de exceção para banir opositores do cenário, além de criar uma geração de “órfãos do talvez, do quem sabe?”, como denominado por ativistas de esquerda que enfrentaram as garras da repressão desencadeada em todos os níveis da sociedade brasileira. No exercício do mandato de presidente da República, Dilma Rousseff chegou a criar uma Comissão Nacional da Verdade para fazer um levantamento dos casos de presos políticos que foram mortos ou dados como desaparecidos ou que sofreram torturas em presídios do Estado. A ditadura militar foi oficialmente considerada encerrada em 1985, com a eleição, ainda que por via indireta, de Tancredo Neves para a presidência da República. As cicatrizes do nefasto período histórico ainda estão vivas, sessenta anos depois.