Nonato Guedes
Parlamentares da direita conservadora na Câmara Federal mexeram num “vespeiro” ao propor urgência na votação de um projeto de lei do deputado Sóstenes Cavalcante, do PL-RJ, que equipara o aborto depois de 22 semanas de gravidez ao crime de homicídio. Em casos de estupro e de aborto como consequência da violência, a mulher é duplamente penalizada, se for levada adiante a proposta de condenação, que gera controvérsias dentro do próprio Parlamento e repercussão negativa em segmentos informados da sociedade. A primeira-dama “Janja” Lula da Silva disse, ontem, que o PL 1.904 de 2024 “ataca a dignidade de mulheres e meninas”, enquanto a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, advertiu para reflexos perigosos que podem advir. Em seu perfil no X (ex-Twitter) a primeira-dama escreveu: “Os propositores do PL parecem desconhecer as batalhas que mulheres, meninas e suas famílias enfrentam para exercer seu direito ao aborto legal e seguro no Brasil”.
Em alguns círculos a impressão é de que segmentos evangélicos e ideologicamente conservadores movimentam-se para “jogar para a galera”, radicalizando na proposta de soluções mais enérgicas que apenas contribuem para agravar a questão, mas em outros círculos prospera a ideia de que a orquestração faz parte do movimento de expansão da ofensiva da direita em relação à pauta de costumes no Congresso Nacional, quer na Câmara, quer no Senado, não se descartando manobra para pôr em xeque o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva junto a agrupamentos que não o apoiaram na campanha de 2022. O projeto de Sóstenes, um pastor evangélico, tem coautoria de 32 congressistas da Casa Baixa e a Câmara chegou a aprovar a urgência na votação, abrindo uma janela para a análise diretamente no plenário, sem a necessidade de passar por comissões temáticas. “Janja” classificou como “preocupante” o avanço do projeto, dizendo que o Congresso poderia e deveria trabalhar para garantir as condições e a agilidade no acesso ao aborto legal e seguro pelo SUS.
– Não podemos revitimizar e criminalizar essas mulheres e meninas, amparadas pela lei. Precisamos protegê-las e acolhê-las – declarou a primeira-dama, observando que os propositores do PL parecem desconhecer as batalhas que mulheres, meninas e suas famílias enfrentam para exercer seu direito ao aborto legal e seguro no Brasil. Isso ataca a dignidade das mulheres e meninas, garantida pela Constituição Cidadã. É um absurdo e retrocede em nossos direitos. A cada seis minutos, uma mulher é estuprada no Brasil. O Congresso poderia e deveria trabalhar para garantir as condições e a agilidade no acesso ao aborto legal e seguro pelo SUS – proclamou a mulher do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Atualmente, a legislação vigente determina que a interrupção da gravidez seja feita de forma induzida em caso de estupro, risco de morte à gestante e anencefalia do feto. O deputado Sóstenes Cavalcante, no seu texto, estabeleceu que mesmo se a gravidez for resultado de um estupro, não será permitida a interrupção se o feto for considerado “viável”, ou seja, capaz de sobreviver fora do útero. A ala conservadora no Parlamento realiza um esforço votar projetos da chamada pauta de costumes, contrários a temas de ocupações de terras, diretos da comunidade LGBT+ e aborto.
A Ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, igualmente criticou o PL que equipara o aborto ao crime de homicídio. Segundo ela, a proposta é inconstitucional por alterar questões já previstas em lei. “Nós não podemos aceitar que o pouco que nós temos de garantia de direito para meninas e mulheres seja destruído neste momento”, salientou a ministra numa entrevista concedida à CNN Brasil. Ela acrescentou que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não pretende mexer na legislação que trata do assunto. A Ministra das Mulheres também afirmou que o PL é equivocado e apresenta uma ameaça para as meninas de 9 a 14 anos. Mencionou que, em 2022, o Brasil registrou 14.000 casos de gravidez nessa faixa etária e 75.000 estupros. De acordo com a Ministra, em seis de cada dez casos de violência, as vítimas têm até 13 anos. “Setenta por cento dos casos de violência contra meninas acontecem dentro de casa, e temos um elemento fundamental, que é a demora. O medo da criança, primeiro de saber que está grávida e, segundo, de denunciar o agressor, que na maioria das vezes é seu pai, seu irmão ou seu tio, é um complicador (…) Não podemos estragar a vida de uma menina”.
O presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que começa a ser pressionado diante da perspectiva de votação da matéria no Plenário da Casa, tem defendido uma pauta cautelosa, sem nenhum açodamento, no trato do assunto. Como é praxe no seu posicionamento diante de projetos complexos, ele sugeriu, em entrevista coletiva, que o debate seja bastante aprofundado a fim de que não venham a ser cometidas injustiças irreparáveis, advertindo que estão em jogo princípios essenciais ligados à própria sobrevivência. Rodrigo Pacheco deu sua palavra de que o projeto não seguirá diretamente para o Plenário sem, antes, passar pelo crivo de comissões técnicas ou temáticas, encarregadas de analisar detidamente a questão, verificar aspectos constitucionais e o acatamento a outros princípios previstos em lei. Ele disse que na hora oportuna manifestará seu próprio pensamento, mas que saberá diferenciar o seu pensamento do posicionamento que for adotado pela maioria. “Nesse caso, o meu papel é o de respeitar o que for decidido”, salienta. Enquanto isso, a mobilização promete se intensificar da parte de organismos de representação das mulheres com adesão de expoentes da sociedade civil organizada.