Nonato Guedes
Decisões tomadas pelo ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, limitando a execução das chamadas “emendas pix” provocaram reações de insubmissão por parte do Senado e da Câmara dos Deputados, cujas advocacias ingressaram com agravos regimentais contestando as medidas. Protocolados na última quinta-feira, os documentos pedem a revogação de duas liminares assinadas pelo magistrado, e a reação do Parlamento se dá em meio a polêmicas que se estendem à própria sociedade sobre abusos de poder cometidos pelo Legislativo, a exemplo do famigerado “orçamento secreto” e, mais recentemente, as emendas orçamentárias individuais do tipo transferência especial. No Brasil, hoje, parlamentares possuem mais poder na execução orçamentária do que governantes que administram as máquinas públicas – e há registros de distorções na destinação das emendas, afetando a representatividade do sistema institucional.
As “emendas pix”, como são conhecidas, somam cerca de R$ 8 bilhões e constituem recursos repassados diretamente a Estados, Distrito Federal e municípios sem uma indicação específica de destinação, o que abre portas para irregularidades e abusos de toda ordem. No dia primeiro de agosto, o ministro Flávio Dino determinou que as transferências sejam fiscalizadas pelo Tribunal de Contas da União e pela Controladoria-Geral da União, numa tentativa de revestir o processo do mínimo de transparência e legalidade, num país ainda contaminado pelo desperdício de recursos públicos. Na quinta-feira, antes dos agravos, o ministro confirmou a decisão, mas permitiu a execução de “emendas pix” para obras em andamento. As liminares de Flávio Dino devem ser levadas neste mês ao Plenário Virtual do Supremo Tribunal Federal e se referem a duas ações submetidas ao STF: a Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.688, proposta pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) impetrada pelo Psol. As Advocacias do Senado e da Câmara, em resposta, afirmam que as liminares “partem de premissas equivocadas”.
No agravo regimental relacionado à ação da Abraji, o Congresso Nacional reafirma “O apreço pelos valores da transparência e eficiência nos serviços públicos”. Os advogados, entretanto, apresentam uma série de argumentos para contestar a decisão monocrática de Flávio Dino. Além de questionamentos formais, o Senado e a Câmara lembram que as “emendas pix” foram criadas pela Emenda Constitucional 105, promulgada em 2019. Para as duas Casas, a norma só poderia ser limitada pelo STF se houvesse “inequívoca afronta a cláusula pétrea da Constituição”. O agravo destaca: “A reforma constitucional, ao estabelecer uma modalidade de transferência de recursos entre entes públicos, não afronta o princípio da publicidade nem viola quaisquer direitos de cidadãos relacionados ao controle da Administração Pública. Eventuais irregularidades devem ser sanadas por meio da implementação de medidas de fiscalização que aprimorem a aderência à legislação aplicável”. Ainda de conformidade com o texto, as medidas impostas por Flávio Dino violam a autonomia financeira e patrimonial dos Estados, Distrito Federal e municípios. “Se o recurso é incorporado ao patrimônio do ente subnacional, não há que se falar em controle prévio por parte da União, pelo TCU ou pela CGU”, diz o documento.
A “Agência Senado” informa que as Advocacias do Senado e da Câmara afirmam ainda ser impossível assegurar a “absoluta vinculação federativa” na destinação das “emendas pix” exigida pelo ministro Flávio Dino. “Tal determinação representa indevida restrição ao pleno exercício do mandato parlamentar e viola os princípios de cooperação e solidariedade federativa”, aponta o agravo. Ainda segundo expressa o documento, a decisão do STF coloca em xeque a autoridade legislativa do Congresso e observa que essa prática pode comprometer a eficácia das transferências especiais, sobretudo na área da Saúde “porque a ausência de uma finalidade pré-definida para os recursos pode desencorajar os beneficiários a direcioná-los para despesas de saúde, devido ao trâmite mais lento e complexo exigido para a análise e aprovação dos projetos”. A ADPF iniciada pelo Psol em 2021 questiona a execução do chamado “orçamento secreto” e o uso indevido das emendas do relator do Orçamento, identificadas pela sigla RP-9. Em 2022, a relatora da ação, a então ministra Rosa Weber, afirmou que o modelo afeta os princípios constitucionais de transparência, impessoalidade, moralidade e publicidade. Naquele mesmo ano, o STF julgou o “orçamento secreto” inconstitucional.
Em julho deste ano, as entidades Contas Abertas, Transparência Brasil e Transparência Internacional Brasil, que participam da ADPF 854 na condição de “amici curiae” (amigos da Corte), levantaram a suspeita de que as “emendas pix” podem configurar a manutenção do “orçamento secreto”. No dia primeiro de agosto, o ministro Flávio Dino, que ocupa a vaga deixada por Rosa Weber no STF, concedeu uma liminar na ADPF 854, determinando que deputados e senadores só destinem emendas aos Estados pelos quais foram eleitos. Além disso, os repasses precisam assegurar prévia e total rastreabilidade pela União. Para as Advocacias do Senado e da Câmara, a decisão de Flávio Dino “extrapola o teor do acórdão transitado em julgado” pela decisão tomada pelo STF em 2022. “Ao abranger qualquer tipo de emenda ou fração de emenda, a decisão extrapolou o objeto do acórdão, criando novas obrigações que não possuem fundamento legal ou constitucional, já que as emendas parlamentares individuais e de bancada possuem efetividade na própria Constituição”, argumentam no agravo. Seja como for, o debate se encaminha, agora, para uma maior amplitude, envolvendo diretamente a sociedade, cujos interesses devem ser preservados acima de conveniências político-partidárias de congressistas.