Nonato Guedes
Num depoimento à TV Senado, ao ensejo do transcurso das celebrações dos 200 anos do Senado, o ex-presidente da Casa e da República José Sarney enfatiza que o Parlamento é “o coração da democracia” e ressalta que, apesar de ser alvo constante de críticas da sociedade, o Congresso Nacional é o espaço de garantia e manifestação das liberdades democráticas. Aos 94 anos, Sarney repassou sua trajetória política, relembrando momentos-chaves da transição democrática e foi categórico: “Um Parlamento forte é uma democracia forte”. É impossível contar a história recente do Brasil e do bicentenário do Senado sem citar o nome de José Sarney, conforme reportagem da “Agência Senado”. É um dos raros brasileiros a ter chefiado o Poder Executivo e o Legislativo. Foi o primeiro presidente civil após 24 anos de ditadura militar e o mais longevo político do país – em 2024, completa 70 anos de vida pública. No Senado, onde passou 38 anos, presidiu a Casa por quatro vezes. Foram oito anos na cadeira localizada sob o busto de Ruy Barbosa, patrono do Senado Federal. Mais do que qualquer outro desde o Império.
Natural de Pinheiros, no Maranhão, onde nasceu em 24 de abril de 1930, José Sarney foi testemunha e protagonista de inúmeros momentos históricos do país. Ingressou na política em 1954. Depois de dois mandatos como deputado federal, foi governador do Maranhão. Chegou ao Senado em 1971, durante a ditadura militar, quando era filiado à Arena, o partido governista. Embora fosse um novato na Casa, Sarney foi prontamente acolhido pelo denominado “Sacro Colégio dos Cardeais”, um grupo de políticos experientes dedicados a preservar o funcionamento do Congresso. Integravam a seleta turma nomes como Daniel Krieger, Amaral Peixoto, Magalhães Pinto e Franco Montoro. “Fizemos um pacto: quando a coisa ficasse paroxística, em uma luta entre o Congresso e os militares, nós não deixaríamos fechar o Congresso, nós abdicaríamos o que fosse preciso, mas não deixaríamos fechar o Congresso. Eu acho que esse é um serviço prestado ao Brasil por esses homens que constituíam o Sacro Colégio”, assinalou Sarney na entrevista ao programa Salão Nobre, na edição especial pelo bicentenário do Senado.
Apesar da articulação do grupo, o fechamento do Parlamento foi inevitável durante um período específico. O então presidente da República, general Ernesto Geisel, valeu-se do Ato Institucional Número 5 e fechou o Congresso no dia primeiro de abril de 1977 – ou, como definiu o mandatário, colocou o Congresso “em recesso”. O pretexto foi a rejeição, pela Casa, da proposta de reforma do Judiciário, mas a preocupação do governo era evitar nova vitória eleitoral do partido de oposição, o MDB, nas eleições de 1978. Em 1974, a legenda havia elegido 16 das 22 vagas disputadas para o Senado. No dizer de Ulysses Guimarães, quanto mais o governo castigava, mais o MDB crescia, como pão-de-ló. Sarney sustenta que o presidente Geisel queria fazer a reforma do Judiciário mas confirma que havia uma reação muito grande. “Ninguém queria fazer reforma do Judiciário no Congresso. Então nós trabalhamos na surdina, todos os partidos (para rejeitar) e o Geisel decretou o recesso” – recorda. Durante as duas semanas em que Senado e Câmara paralisaram seus trabalhos, o governo elaborou uma série de medidas para garantir maioria no Poder Legislativo, em especial no Senado. O conjunto de normas ficou conhecido como Pacote de Abril. Entre as medidas estava a previsão de eleição indireta de um terço dos senadores, a serem escolhidos por um colégio eleitoral constituído por deputados das assembleias legislativas e por delegados das câmaras municipais. A imprensa e a população apelidaram os novos parlamentares de “senadores biônicos”.
Já com o Congresso em pleno funcionamento e com uma crescente demanda popular pela volta da democracia, coube a Sarney a missão de relatar, em 1978, a Proposta de Emenda à Constituição que daria origem à Emenda Constitucional 11. A medida extinguiu os atos institucionais do período ditatorial e restabeleceu a pluralidade partidária. De acordo com o ex-presidente José Sarney, sua atuação, mesmo na base do governo, nunca foi pautada pela defesa do regime militar, mas de determinados projetos. “Eu nunca fiz discurso de defesa do regime militar. Eu sempre fazia discurso defendendo determinada pauta”, afirmou. Em seu parecer, o então senador apontou que a emenda não acabava com o autoritarismo, mas representava o começo de um longo processo de transição. Para Sarney, o melhor caminho para o fim do governo militar seria pela via institucional. “Na surdina, nós tentávamos que na realidade o Parlamento não fosse atingido, mas tudo que nós fazíamos tinha um objetivo maior: que nós voltássemos à plenitude democrática e ao Estado de direito o mais rapidamente possível. Porque tínhamos a convicção que inevitavelmente o Brasil chegaria a esse ponto. Agora, nós não queríamos chegar pela revolução e, sim, pela reforma”, disse.
Sarney também recapitulou os embates com Ulysses Guimarães, então deputado federal e um dos líderes da oposição ao regime, que faleceu em 1992. “Eu fui relator porque o Geisel achava que eu tinha uma boa relação com todos os partidos. Muitas vezes eu combinei com Ulysses os discursos que nós tínhamos que fazer. Ele fazia o discurso na Câmara e eu ia assistir. Eu fazia um discurso no Senado e ele assistia ao meu discurso”, relembrou. Outro episódio que marcou Sarney aconteceu em 1984, quando a emenda Dante de Oliveira, prevendo a volta das eleições diretas, estava em votação na Câmara dos Deputados. Sarney era presidente do PDS, partido que sucedeu a Arena e, mesmo com a orientação contrária da legenda, seu filho, o deputado federal Sarney Filho votou a favor das eleições diretas para presidente da República. “Fiz discurso contra as diretas. Meu filho votou pelas diretas, e o que eu fiz? Fui ao presidente da República e disse: vim lhe entregar o lugar de presidente do partido do governo. Para surpresa minha, o Figueiredo, então presidente, me disse: Sarney, hoje nós não controlamos mais nossos filhos”. Então eu disse: “Eu fiquei orgulhoso do meu filho”. E ele respondeu: “Eu também ficaria”. Apesar da campanha das Diretas Já, faltaram 22 votos na Câmara para o texto seguir para o Senado. Sarney se despediu do Senado em 20154 após ficar quase quatro décadas no Parlamento.